quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Bela e jovem, filme de sutileza impactante



Isabelle (Marine Vacth) é lindíssima. Aos 17 anos, tem o porte de dona de si, cabelos e olhos que tomam conta do espaço. Garota com padrão de vida, mimada pela mãe e pelo padrasto, com uma boa relação com o irmão mais novo. E torna-se prostituta de luxo. A cada cliente vai desenvolvendo um prazer secreto, a possibilidade de descobertas, do próprio corpo e da vida. Aparenta ciência da própria beleza, do seu poder de sedução, e os utiliza para ganhar dinheiro e espaço. 

Faz tudo assim, sem precisar, quebrando o clichê das necessidades. Ou melhor, o que é necessidade? É algo de cada um. O dela talvez seja desprender-se de uma vida entediante. Ou então preencher algum vazio. No terapeuta, com sessões forçadas pela mãe, que não se conforma ao descobrir que a filha circula clandestinamente a fazer programas, não demonstra querer desvendar os motivos de sua escolha. Para ela, nada daquilo é muito anormal, apenas é o que é. A vida como ela é, seu Nelson!



François Ozon, diretor do filme, não se preocupa em dramatizar a situação. Lembra Haneke em Amor, sem usar de músicas para imprimir emoções, choros e velas. O inconformismo da mãe, até mesmo ele, é ao mesmo tempo evidente e contido. A culpa pelos caminhos da filha dão lugar à vontade de consertar o que não tem conserto, nem nunca terá. A sua pequena Isabelle é ainda uma adolescente, mas moça, que em ímpetos avisa ser proprietária do próprio nariz, corpo e alma. 

Isabelle não é uma empreendedora do sexo como Bruna Surfistinha. Ela é francesa, delicada e até matreira. Mistura pureza com malícia, ambiguidade que fica escancarada quando encontra um homem de terceira idade com quem passou uma noite no teatro. Olha para ele, que desconcerta-se ao lado da esposa. Ali fica clara a satisfação em perceber-se potente. De um lado, rompe a moral cristã e a estrutura familiar. Do outro, faz gritar que a 'profissão marginalizada' é, de alguma forma, a perdição de alguns homens. Dois valores falsamente opostos. 

Nas cenas de sexo desvela-se o podre e o sublime. O podre no sujeito que vê a mulher como sua boneca, sua escrava. O sublime no homem que deslumbra-se com a mulher e dela faz sua projeção inalcançável. Pelas ruas de Paris, circula a bela Isabelle, deixando rastros de que a beleza salvará o mundo, com o perdão do príncipe Michkin, de Dostoievski. 

Em Jovem e Bela (Jeune e Jolie), há impacto. O natural impacto ao ver uma filha da classe média alta, adolescente, se prostituir. Entediada, renegando os valores tradicionais, ela busca o caminho reprovado. Parece precocemente farta daquilo que a cerca. E, por isso, corre pelo estrada do que desagradará seus circunstantes. A ironia é delicada, como quando uma amiga conta o desastre de sua primeira relação pensando estar tratando com uma virgem. 


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Pedalando com Molière - quando o teatro vai ao cinema

A paixão por uma peça 'sacra' do teatro francês, do teatro de um gênio francês, é o eixo de "Pedalando com Molière", que está em cartaz no Espaço Itaú em São Paulo. Aliás, é mais um exemplo de tradução pessimamente feita de título, transformando-o em mambembe. O original Alceste à byciclete (Alceste de bicicleta) deveria ser mantido, traduz bem mais a essência do filme, enquanto o que está vertido nos cartazes e no bilhete é de um ridículo...


Mas, enfim, voltando ao que interessa. Um ator chamado Serge Tanneur (Fabrice Luchini) resolve isolar-se da sociedade (lembrou-me o brasileiro Walmor Chagas, falecido recentemente e que tinha optado por esse estilo retirado de vida) e vai viver num local chamado Île de Rè, na França. Vai viver como um misantropo, avesso aos contatos sociais. Um outro ator, Gauthier Valence (Lambert Wilson), vai procurá-lo para propor encenar uma peça de Molière chamada justamente O misantropo. Então temos os dois em diálogos incríveis, profundos, sobre a natureza humana e disputando a todo momento em cara e coroa quem é o personagem principal, o tal Alceste, referido no título da peça, e seu debatedor em boa parte da história. 




Muitas são as cenas de ensaio em que as vaidades dos dois se excitam e geram conflito. E esse estado emocional é representado justamente pelos diálogos, já que a quase todo momento Alceste expõe sua aversão aos outros e sua autoestima elevadíssima. Os conteúdos confundem-se com as personalidades. E, detalhe, até quase o fim Serge não deixa claro se aceita ou não encenar a peça, apenas submete-se aos ensaios. Paralelamente a esse aspecto mais refinado, artístico, temos um desenrolar banal da história, com passeios pastelões de bicicleta dos dois pela ilha (com tombos circenses), uma italiana que mexe com os corações dos amigos-inimigos e bela fotografia. 




Eu diria que as reflexões de Molière sobre o estado do ser e a necessidade de méritos e diferenças entre as pessoas são o ponto forte para quem gosta de um cinema pensante, humano, sem fórmulas bem acabadas de felicidade. Quem deseja isso sairá satisfeito do cinema. Sairá com a sensação de que viu mais uma obra francesa com cara de francesa, em que ícones intelectuais do país são o vaso condutor de uma trama. E também dará algumas risadas, trata-se de uma comédia. Há boa música também, em especial uma italiana que toca em um passeio de carro, e a que desfecha o filme. Há paixão, devoção por um criador. Tanto que os 'contendores' se entregam aos diálogos como se eles fossem sagrados, uma bíblica teatral. Lembrei de um filme italiano que vi no mesmo espaço da Augusta há poucos meses chamado César deve morrer, quando presidiários encenam "Julio Cesar", do Shakespare, mostrando trechos da peça para a audiência. 



sábado, 2 de novembro de 2013

O meu vício em Sessão de Terapia

                                                Zécarlos Machado é o psicólogo Theo

Nas minhas férias recentes tive a agradável surpresa de ver que todos os episódios de Sessão de Terapia, série exibida de segunda a sexta pelo GNT,  estavam ao meu alcance. Devorei a primeira temporada, de cabo a rabo. Nunca fui um grande apreciador de séries, ao menos não dessas em que é preciso ver de forma seriada, respeitando a proposta embutida no nome. Breaking Bad e Família Soprano nunca vi, só ouço falar, por exemplo. Lost parei até agora no primeiro episódio, vejam só!

Mas Sessão de Terapia pegou feito tatuagem. Maria Fernanda Cândido, por motivos óbvios, Selton Mello, ator fabuloso e diretor nada convencional, e Zécarlos Machado, que já conhecia de alguns filmes como "Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios" e "As melhores coisas do mundo", foram poderosos chamarizes. Some-se a isso uma certa curiosidade que tenho por terapia (já ameacei fazer algumas vezes, insuflado por amigos e parentes) e a voltagem calibradamente humana e virei presa fácil da trama. A ponto de estar acompanhando a segunda temporada, que está passando agora, com a mesma devoção.

O drama, meu gênero predileto, é contemplado à exaustão, mas sem ser mambembe. O psicólogo no centro da história é vivido com magnificência por Zécarlos. Incrível sua mudança de tom quando é o analisado - sempre às sextas ele visita Dora, a sua psicóloga - um troço genial é que antes de cada capítulo, que é uma sessão, vem o nome do paciente (ou dos pacientes), dia e horário. A psicóloga do psicólogo, pois analistas também tem seus calcanhares de Áquiles emocionais. É um psicodrama, um festival de problemas clássicos sendo desmontados no consultório, que também é residência do protagonista - detalhes de terapia aparecem fartos, como atrasos recriminados e a frase padrão: Acabou seu tempo!

                                            Terapia de casal também está presente na série

São muitos os elementos atraentes. Meus olhos ficaram cheios de lágrimas em vários momentos. Na primeira temporada é curioso como os pais dos analisados têm papel decisivo nos desencontros psicológicos e afetivos dos pacientes. As perguntas cirúrgicas de Theo, são elas o bisturi do analista, a música de fundo que entra, corrosiva, nos momentos de desvelo emocional, a terapia de casal, as irrupções de agressividade dos analisados, os rasgos fraternais do psicólogo por seus pacientes.

Além de não conseguir conduzir sua vida, ao passo que é visto pelos pacientes como o que conduzirá as suas, Theo vê-se em um conflito que não deve ser incomum para terapeutas. Considera-se culpado pelo suicídio de um de seus pacientes, Breno, interpretado por Sérgio Guizé. Há uns detalhes que revelam o dedo de Selton Mello (ele não resume-se a emprestar a voz em todo começo de episódio: Nos últimos capítulos de Sessão de Terapia). A câmera fica em lado diferente a depender do paciente. A ginasta boca dura e crítica da mãe é vista pela sua direita. Julia (Maria Fernanda Cândido), apaixonada por Theo, é vista pela esquerda. Alguém arrisca razões psicanalíticas para isso?

Há a tão adorada escatologia típica de Selton, como o detalhe das mãos de Julia ainda com esperma de uma relação sexual que teve antes de uma das sessões - relação que ela descreve em pormenores que ora excitam, ora produzem asco. Há a força do olhar. Em Theo, os olhos falam. Em Dora, eles berram. Há os símbolos: a cafeteira que Breno dá para Theo ainda em um momento em que este, assim como fez seu pai, ataca de todas as formas o terapeuta tentando desvaler sua profissão. O raciocínio militar e machista do pai (redundância). Tudo muito atraente e minucioso.

                                            Bianca Muller faz a ginasta perturbada

Algumas cenas são de profunda beleza.. Quando a ginasta vivida por Bianca Muller (que olhos lindos tem a moça) ensaia exercício no sofá. Quando Théo a recebe com bexigas coloridas para parabenizá-la por seu desempenho nas eliminatórias. Quando Julia recebe Théo em seu apartamento com grandes janelas e muitos silêncios. Quando Ana (Mariana Lima) descreve a estúpida morte de seu pai quando tomavam sorvete. Quando Théo tem surto violento e parte para cima de Breno após pesada fala do paciente.

Outras cenas são de morbidez impactante. Em especial aquela em que Theo recebe uma coroa de flores mortuárias com a inscrição "Aqui se faz, aqui se paga", no tom ameaçador do pai de Breno.

Culpa é o cerne da série. O sentimento de culpa. Culpa por um relacionamento que não dá certa, pela relação com ruim com ou pai, pelos maus hábitos de um filho, pela morte de alguém.. Para quem gosta de teias emocionais, das fraquezas humanas, Sessão de Terapia é um prato robusto.

                                         
                                          Aqui um teaser de Sessão de terapia



quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Eu tenho medo de voar de avião


Vem a primeira sacodida e já sinto o coração acelerar. Quando acende a luzinha vermelha com o aviso de atar cintos, seguido pelo recado da comissária de bordo de que "passaremos por uma zona de turbulência", não consigo mais fazer outra coisa a não ser rezar - logo eu, que não sei rezar! O desejo de gritar: Parem esta máquina!, logo é estancado pela sensata recordação de que estamos no ar e parar significa despencar.

É sempre assim! Viajar de avião pra mim é passar por momentos tensos, sem pegar no sono, por mais que o cansaço seja enorme, e espantar-me com a tranquilidade (simulada?) dos passageiros ao lado. Esse medo já foi maior.

O pavor me fez virar um pesquisador sobre acidentes aéreos e as propriedades físicas que fazem essas geringonças lindas (acho aviões belíssimos) flutuar em velocidade e alturas enormes. Isso me ajudou a ter algumas gotas de racionalidade. Mas os chacoalhões no ar, comumente, transformam isso em pó. Já fiz viagens longas, duas delas para a Europa nos últimos meses, e curtíssimas, tipo ponte Rio-São Paulo e uma de Santiago a Mendoza (ARG) cujo trajeto era feito no ritmo de samba por cima da Cordilheira dos Andes, e os momentos de apreensão sempre aparecem.

Com maior ou menor intensidade, sempre há turbulência. Já li que turbulência não derruba avião. O pedido pra colocar os cintos seria, nesses momentos, apenas pra evitar que num deslocamento mais brusco, numa eventual perda repentina de altura, o sujeito bata o cocuruto no teto, seja jogado para o corredor ou até caia no colo de uma aeromoça - esta possibilidade é a única que me atrai, dada a quantidade absurda de lindas mulheres de todas as nacionalidades que trabalham em aeronaves. Mas aquele avião da Air France que caiu perto do Oeste africano foi derrubado por forte turbulência, não? Aiaiaiaia!

A pessoa que tem medo de voar - e já vi pesquisas (não sei citar as fontes) mostrando que quase todo mundo, em maior ou menor grau, tem essa fobia - sempre se detém mais à exceção que à regra. É comum que sempre nos apeguemos aos raros acidentes famosos para temer, ignorando os milhares de voos que acontecem todos os dias sem problemas. Vejam meu caso:

- Tenho medo da decolagem porque me lembro do acidente do Jabaquara, no fim dos anos 90.

- Tenho medo da turbulência no voo de cruzeiro porque lembro do Air France que ía a Paris e virou mil peças no oceano.

- Tenho medo de uma colisão com outra aeronave no ar porque lembro do choque da aeronave da Gol com aquele Legacy bem na asa.

- Tenho medo de choque contra uma montanha ou outro acidente geográfico porque lembro dos Mamonas Assassinas ou de uma construção humana, como no caso dos jogadores do Torino em 1949, quando o avião bateu em uma das torres de uma basílica, na cidade de Superga.

- Tenho medo do pouso porque lembro do avião da TAM que não freou, atravessou a pista de Congonhas e deu de frente com um hangar da companhia.

- Tenho medo que o trem de pouso tenha sido danificado porque lembro do último filme do Almodovar, Os amantes passageiros, e de uma imagem que vi certa vez na TV de uma aeronave pousando sem uma das rodas, com chispas saindo no atrito do ferro com a pista.

- E quando, nas instruções de segurança, falam de pouso na água. Logo lembro de o Náufrago, com o Tom Hanks, e me imagino tendo que nadar num oceano frígido como o Pacífico e terminando dialogando com uma bola. Ou então daquela galera do pouso no Rio Hudson, em Nova York.. Ah não, chega!

E nem vou citar o medo de que uma ave seja engolida por uma das turbinas, como já aconteceu, para não parecer ridículo por demais.

Curiosamente, quando o avião é maior me sinto mais acolhido, como se querubins e serafins me fizesse carícias. Parece que sacode menos e, ao olhar pra frente, vê-se uma máquina tão imponente que é fácil imaginar-se dentro de um simulador. Simuladores não caem, bem sabemos.

Eu falei do pouso em parágrafo lá em cima, mas devo dizer que meu momento de maior alívio num voo é justamente quando vem o aviso de que está sendo iniciado o procedimento de aterragem. Por mais ciente que esteja de que a maior parte das ocorrências acontecem em decolagens e pousos, quando começamos a descer a proximidade com a terra me deixa confortável. Vejam como é a psiquê humana. Como se cair a, sei lá, 400 metros seja molezinha e meu corpo não fosse virar de qualquer forma um boneco esquartejado.

Já pude ver a Baia de Guanabara, a Floresta Amazônia, a Torre Eiffel, o Rio Tâmisa, os infinitos arranhas-céus paulistanos, a Cordilheira dos Andes e outras edificações humanas ou naturais das alturas, graças a Santos Dummont e outros pioneiros da aviação. Fico muito grato a eles.. Nunca deixei de fazer uma viagem porque o medo foi maior. O máximo que aconteceu foi alguma insônia pré-férias. Porque, como diz a canção, "eu tenho medo de voar de avião" (mas teria ainda mais de asa-delta ou helicóptero, claro).

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O chiclete da tortura

O chiclete da tortura



Pisar num chiclete é um desastre. A goma de mascar não é lá um objeto descomunal, a depender da marca tem o tamanho de uma joaninha, mas se você pisar numa terá um tormento considerável. Se estiver a caminho do trabalho, de um encontro amoroso ou de uma visita a amigos, então, nem se fale. Você longo sente que seu tênis deu de cara com uma na pisada seguinte. Dá aquela colada que faz o pé mover-se fora do padrão. Encostar num muro e tentar arrancar será uma cena patética e infrutífera. Além de naquele momento não tratar-se mais de uma simples pasta rosada, avermelhada ou azul-anil, e sim de uma gosma esparramada com micróbios e alguns pontos negros. Afinal, não custa lembrar, ela é feita para mascar. Então, tirar é uma operação trabalhosa, hercúlea, necessita de paciência, concentração e muitas caretas de nojo. 

Qual a primeira reação de alguém que pisa no chiclete no meio da rua? É soltar um "putis", para não dizer coisas mais indelicadas. É uma desgraça! Nesse momento crimes de guerra na Síria, médicos cubanos e a briga com a namorada tornam-se futilidade. O grande encosto é a goma que agora mora na sua sola. Ela está ali como um carrapato. E veio de uma boca que você desconhece. Você, então, pragueja aquele mascador suíno, que jogou a borracha açucarada em lugar público. Lixo para quê? Se conhecesse o dito cujo recorreria a um vodu e desejaria que pisasse, inadvertidamente, em uma tribo de chicletes grossos e babados.

Na sola do tênis as ranhuras ajudam no transtorno. Os pedaços ficam infiltrados por ali. No sapato, quando caminhava para o casamento, passou a compor a superfície. Caso desista, você terá que disfarçar. Não cruze as pernas com o calçado enchicletado para cima. Ao menos se fosse ao show do Chiclete com banana pareceria uma homenagem, teria um argumento. O jeito é entrar em um banheiro, público, da empresa ou da casa do amigo, sentar-se na tampa da privada e iniciar o resgate da lisura. Os últimos pedaços darão trabalho. Os restos das papilas gustativas alheias te virão à ideia. O fato é que chiclete quando cola te leva à tortura.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

As compras de uma vida inteira

A gente sempre tem alguma coisa para comprar. Acabou a pasta de dentes, o sabonete tá pequenininho, a lâmpada pifou, o fogão idem, a geladeira ibidem... Não tem mais queijo na geladeira, a manteiga só rende se raspar as frestas do pote e as poucas frutas, no fundo da gaveta, estão machucadas. E roupas? Amigos resolvem casar e o único paletó não dará conta do recado. Os tênis estão ficando surrados, o estoque de meias é de dar vergonha e o de cuecas nem se comenta. No quarto, a proteção da gaveta se soltou, os lençóis estão com poucos substitutos, diga-se o mesmo de fronhas e cobertores, e o aquecedor para os dias de frio está com um ruído estranhíssimo. Faltam talheres para receber visitas, os pratos azuis estão demodês e as cortinas estão um horror. De repente, queima a televisão e o chuveiro! Precisa de uma lixeira nova, de um varal novo, de uma fechadura nova, de um apartamento novo... 

Muitas reformas, trocas e aquisições a gente deixa pra mais tarde. O orçamento não aguenta! A paciência não existe! O tempo urge! A preguiça é senhora! Mas sempre haverá o incômodo de um taco solto no chão, de um batente envelhecido, da falta de um guarda-livros e do número insuficiente de travesseiros. Isso para não dizer das lacunas tecnológicas. Como não tenho o último modelo de smartphone? E a TV de cinematográficas polegadas? Um e-book para finalmente ler livros sem esperar sua importação não seria uma má pedida, heim? 


Não queremos só comida e roupa lavada. Queremos mais e mais. As primeiras necessidades clamam: acabou o cotonete e o bombril - não à toa, duas marcas metonímicas, que transformaram-se no nome do produto. Higiene e alimentação são de primeira grandeza. A preocupação não acaba. 

O consumo vive entre a urgência e a opulência. Gastamos horas da vida comprando e planejando o que comprar, mesmo que nada disso levemos para o caixão (embora saiba de gente que pediu para se enterrada com celular e outros sejam sepultados com a roupa da moda). Seguimos fazendo sexo e precisando sorrir, duas coisas que não são exatamente compradas - a não ser que você vá a uma casa de senhoritas ou pague para ver um stand-up comedy. Putis, vou ter que parar este texto pra ir à padaria, acabou o pão e ela fecha cedo...

domingo, 25 de agosto de 2013

Maria, uma vitrine para um amor

Maria é dessas mulheres que têm plena consciência de sua beleza. Não esnoba, longe disso. Mas sabe transformar seu brilho em charme. Seu caminhar é lírico, uma poesia original. O feitiço é imediato. E adora flanar pela cidade. Nos meses em que nos envolvemos, não era do sexo furioso nem das noites de vinho com queijo que eu mais gostava não. Meu prazer supremo eram nossos passeios pela cidade. Eu, de mãos dadas, às vezes largava e a deixava à solta observando vitrines. Que deleite! Transforma-se em amante voyeur de suas passadas clássicas, suas arrumadas de cabelo a um pequeno agachamento para observar melhor um perfume, um vestido ou pares de óculos escuros.

E na hora de comer, a forma de pegar os talheres, o cuidadoso gesto de levar a colher à boca. Em diversas oportunidades me peguei naquela paralisia ocular, em que ficamos presos fixamente num ponto, com a imagem a turvar-se. No caminho do prato à boca eu me sentia numa sedução impassível, como que a apagar todo meu passado e nada mais esperar do futuro. Aquele era um momento sublime, poucos segundos que pareciam uma vida. Hedonismo visual completo.

Foram quase quatro meses dessa relação em que meu sentido mais aguçado foi a visão. Não que as outras ficassem deficitárias, muito pelo contrário. O cheiro de Maria até hoje me remete às flores de laranjeira. Sua voz, de uma candura, ainda massageiam minha memória. Seu toque, a sua pele, despertava imediato desejo em mim. Maria tinha na boca o gosto da vida. Mas ver seu charme natural, sem a mínima afetação, foi o prêmio que ganhei.



Pois aconteceu o dia em que, na saída da sessão de cinema, Maria rompeu o namoro comigo. Ironia das ironias, o fim deu-se por conta do meu voyerismo com ela. Assim que pisamos na calçada, larguei sua mão, em gesto característico, para deixá-la tomar distância e eu poder olhar calmamente seus detalhes encantadores. Ela não gostou e fez um questionamento inédito, incisivo:

- Carlos, por que você sempre me deixa solta na rua? Tem vergonha de andar de mãos dadas comigo?

Diante de súbita pergunta, fiquei desencontrado. Não queria revelar que ela para mim era como um quadro vivo, um alimento para minha vista. Gaguejei e soltei uma ideia impensada, uma gafe fatal para uma mulher daquele porte tão definido:

- Gosto de ficar à vontade, sem grude...

Logo percebi a besteira. Se seus movimentos eram um bálsamo para mim, uma nutrição diária, fiz entender o contrário. Que aquela relação era um fardo.

- Então você me acha um chiclete? - perguntou e logo levou as mãos ao rosto, em sinal típico de incredulidade, e deu uma risada nervosa. Para chorar, faltou pouco. Entrevi os olhos marejados, na verdade, mas ela segurou e apressou o passo, pedindo para não segui-la.

Tentei segurar seu braço mas logo afrouxei. Até naquele momento daninho eu não resisti à tentação de vê-la caminhar, desta vez furiosa, objetiva, inquieta. Parei e fui vendo seu vulto lindo, harmônico, ir sumindo. A ruptura deu-se sem decretos (estamos terminados!). Foi no silêncio e com esta última visão. Eu não queria dizer nada, nem poderia. Jamais diria a Maria que o combustível da relação era quase platônico. Era a poesia que ela entornava ao caminhar. Cansei de flagrar, nas paredes da mente, versos que se produziam a cada passo que ela dava. Quando ajeitava uma alça eu lia um pequeno Neruda a exprimir o amor. Nas omoplatas se deslocando era possível ter novos sonetos de Vinicius e pequenas trovas medievais. Não lamento perder os beijos e sussurros de Maria. Lastimo não ter mais o prazer de sua imagem a flanar, de seus trejeitos suaves, de sua não percepção do meu papel de espectador. Nunca mais a vi nem procurei. Ouvi que casou-se com um soldado e mudou-se para Pernambuco. Apenas fico aqui pensando que o mundo deveria ser voyeur dessa mulher a passar em exposição.

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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Rômulo sim é que era romântico de verdade

Conto livremente inspirado na música Românticos, de Vander Lee

Nunca conheci um sujeito como Rômulo. Era um romântico desses que, desconfio, não existem mais. Não que inexistam românticos, mas no grau de insânia dele, febril mesmo, acho difícil. Devem ser raros, pouco visíveis neste mundo prenhe de cautela e auto-afirmação, sem doação. Talvez encontráveis em alguns recônditos da Pauliceia Desvairada. Ele se apaixonava facilmente e logo queria estar dentro da mulher amada, perscrutá-la em detalhes. Embriagava-se e declarava-se, alcoolizado, como um trovador. Escrevinhava poemas, ébrio, com os olhos inundados de lágrimas e alma fervilhando. Para ele, a moça da vez era o paraíso, idealizava, era sua musa eterna. Compunha até músicas, em um violão surrado, e a ela ofertada.

A última vez que o encontrei foi para um café na Augusta.  Nessa ocasião, me contou que a sua bola da vez amada era uma mexicana. Ele a conhecera numa festa na casa de amigos, estava fazendo um estágio de economia no Brasil. Disse que foi paixão "à primeira mirada". Seu relato, sempre açucarado, a pintava, nas suas sempre poéticas e caudalosas palavras, como uma "joia azteca de tez morena perfumadíssima". Ah, aquele Rômulo não tinha jeito! Daquele seu jeito desbragado me disse que logo ao vê-la, enquanto remexia um copo de conhaque com o dedo indicar, fez uma promessa de tornar-se devoto de Nossa Senhora de Guadalupe se ela o correspondesse. Incrível como nunca tinha medo de outra desilusão, mesmo aos 41 anos de idade e uma fila imensa de corações partidos. Olhou-a de frente, de soslaio, de passagem, por todos os ângulos, a noite inteira. No seio da madrugada, já um etílico calibrado, e depois de entrever escapar do rosto dela um sorriso denunciador, aproximou-se. Antes, talvez por ritual e um pouco de demagogia, virou dois pequenos copos de tequila.

Anita era seu nome, Anita Ríos, com aquele erre deslizante do espanhol. Assim respondeu à sua primeira pergunta, chacoalhando a longa pena que complementava o pingente dourado do ouvido esquerdo, com charme e letalidade. Uma morenice, me dizia ele, que lembrava uma cabocla que conhecera em um verão na Paraíba.muitos anos antes. Tinha aquela coisa latino-americana do sangue pulsante. Tava no olhar, de redondo negro com os cantos levemente puxados. Naquela noite não rolou nada, disse-me mas seu furor romântico, de louco desvairado, logo o impulsionou a, no dia seguinte, convencer uma turma de amigos a imitar mariachis no início da noite, no pé do prédio da Consolação em que estava hospedada. Anita, com expressão de susto, começou a ver aquilo e soltou gargalhadas, provavelmente pelo amadorismo e cara de pauísmo da situação. Engraçado que me contava essas coisas sem um pingo de vergonha, sem ruborizar-se


Rômulo me disse que há um mês saia com Anita quando chegou uma carta, com remetente de Puebla, no México. Era de um homem, fato que ele descobriu sem querer, como um típico acaso que costuma atravessar relações frenéticas de ocasião. Quando saía do banho após uma noite de transa caliente com sua nova amada viu que ela lia atentamente a correspondência e assustou-se quando entrou no quarto. Soluçava de tanto chorar. Seu irmão escrevera para dizer que o avô havia falecido. Iria antecipar seu retorno ao México para o enterro do querido abuelo. A reação imediata de Rômulo, um romântico inveterado, foi de pasmo. Não podia ser egoísta, um familiar querido havia partido e era justificável que Anita tomasse essa decisão. Mas nada é justificável para esses tipos que concentram na paixão por uma mulher seus instantes de valia, a única razão para existir naquele momento. E então cometeu o desatino, em um improvisado espanhol (desnecessário e cafona, já que ela falava português escorreito, mas bem ao estilo hiperbólico de seus dramas):

- Vas me dejar? No puedo creer, Anita. És una traicion! Yo te amo!

Quando me contou que roubou dela a carta e rasgou como um animal logo meneei a cabeça em reprovação. Quantas vezes não tive essa reação ao ouvir suas histórias de amante tresloucado. Disse que pegou seu isqueiro e queimou os pedacinhos, como as cinzas pudessem significar a ideia mudada, a permanência da sua venerada mexicana no Brasil. Anita gritou, claro, disse que ele era um boçal e que não respeitava sua dor. O expulsou a socos de casa e ele, como sempre, sentiu um pungente prazer naquela situação. Rômulo gostava dos amores proibidos ou vetados por circunstâncias. Sempre pareceu um escravo do seu romantismo, um masoquista passional, quase uma espécie daqueles poetas tuberculosos do movimento romântico que cantavam a fugacidade da vida e dos amores desperdiçados, em lamentos versificados.



O fato é que aquela foi a última vez que encontrei Rômulo e a última vez que me narrou uma de suas novelas emocionais. Isso faz, estimo, uns dois anos. Lembro-me disso agora por ocasião de sua morte. Sim, Rômulo, o romântico em extinção, nos deixou, extinguiu-se de fato. Soube por um amigo em comum, que me deu a notícia numa conversa telefônica. Rômulo foi assassinado quando saía do trabalho, por um sujeito que, segundo testemunhas, trajava coturnos e um capote longo, preto bem escuro. As investigações indicam que tenha sido um matador de aluguel que teria sido contratado por um marido ferido. Rômulo saia com uma dona casada e foi baleado por isso. Teriam, ele e a senhora, se atracado pela primeira vez no Bixiga, numa noite italiana, quando, inconformada com a traição do marido, foi lá exercer a vingança. Passaram a se ver semanalmente. Mas Rômulo, o nosso romântico fundamental, deixava rastros em buquês de flores e caixas de chocolate. O fato de ser comprometida jamais deve ter sido pra ele um impeditivo, pois o amor sempre era um grito mais alto em sua vida. Um marido enciumado e um amante de coração latejante. Foi um cardápio mortal. Agora lembro de Rômulo como um exemplar do romantismo suicida.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Romeu acorrentado à ingrata Julieta

Romeu acorrentado à ingrata Julieta 

Conto livremente inspirado em "Chão de giz", de Zé Ramalho

"Há tantas violetas velhas sem um colibri"

Meus dias de acorrentado ao calcanhar de Julieta não têm sido fáceis. Cada dia as crises de abstinência amorosa aumentam mais. Sou um adicto do romance, que neste caso é uma droga que causa dependência infinita. Quando aceitei o pedido, foi por amor. Quando temos muito amor, somos escravos do sentimento. Assim, nada mais natural do que prender-se a tendão, calcanho e outras coisas mais do costado do pé da mulher amada. Aliás, a ideia, quando proposta, me agradou bastante, nem precisei de reflexão, pesos e contrapesos. Seria a garantia de que iria aonde ela fosse. Quando temos muito amor, queremos a pessoa toda o tempo inteiro, com exclusividade, acompanhando seus passos, certificando-se da presença permanente, participando de sua romaria pela vida. Poderia assim ter a vigília e seus vestígios.

A corrente que prende meu pulso direito ao calcanhar direito de  Julieta é de extensão razoável, uns quatro metros, mais ou menos. Combinamos um tamanho que evitasse o enjoo, não nos obrigasse a sentir o mútuo cheiro a todo momento, ter que ficar no banheiro enquanto o outro se aliviava, poder ler o livro sem fungadas obrigatórias no cangote e outras inconveniências. É de prata, com nós grossos, portentosos, que compramos especialmente de uma empresa especializada nesses artigos. 

Nesses quatro anos acorrentados, eu no pulso, ela no calcanhar, muita corrente tenho arrastado. O que achava que seria bom tornou-se ruim. Nos acorrentamos quando o amor era tamanho, vulcânico, que enchia a gente de felicidade e grude. Como havíamos aberto uma empresa e trabalhávamos em casa, juntos, termos um elo material foi um pedido que soou como uma ordem. Eu me submeti, essa é a verdade. Agora, dão-se diversos inconvenientes. Outro dia, após três meses sem relação sexual, me agastei, gritei e tentei forçá-la a ir à cozinha comigo. Estava decidido a pegar um  facão e romper a corrente. Ela me puxou e me machucou, para seu gáudico. O pulso, não sabia, sofre mais que o calcanhar. Eu aceitei um elo desigual. Dois riscos vermelhos surgiram na pele que recobre os ossos do punho, os restinhos de rádio e ulna que vêm desde o antebraço. Desisti de forçar e chorei, confesso que chorei!



Já faz um ano que não nos relacionamos amorosamente, mas para sempre fui acorrentado no seu calcanhar. Julieta diz que não me ama mais, mas não consegue se desacorrentar de mim. Um dia, desolado, ouvi ao fundo um verso, numa canção nostálgica, que parecia ter sido feito para o meu suplício. Dizia o cantor, de voz roufenha: ""Atiro balas de canhão, é inútil, pois existe um grão-vizir". Eu ainda nutro fortes sentimentos por ela e me exponho a dores cotidianas, não consigo matar o grão-vizir. Sem me amar, mas acorrentada a mim, ela liga para amantes e sou obrigado, em noites frias e chuvosas, a sentar-me no corredor enquanto ela, no quarto, solta frêmitos e gemidos de amor profundo. Fui castigado pela deusa Lucinha como prometeu acorrentado por Zeus. Romeu acorrentado a Julieta, que me despreza. Estou prostrado neste Olimpo pessoal. Eu a tenho e não tenho. Tenho uma corrente que é minha e dela. É a comunhão de um bem material e uma relação morta. Já tentei forçar o desmanche desse vínculo prateado, ela não deixa. As chaves só ela sabe onde estão e remexer na casa para procurar não posso sem que ela veja - a extensão não é suficiente para ações escondidas. 

Na lona vou a nocaute outra vez! A tristeza acorrentada é pior, não vive-se luto. Não há como esquecer um amor que não nos ama mais estando acorrentado a ele. A força do espaço físico é uma torrente. Pelos estalos da matéria surfam as batidas do meu coração. A imagem de Julieta é uma constante, nos esbarramos, eu ouço suas decisões diárias, sua risada fácil e suas crises hormonais. Freud explica!. Se apenas vivêssemos juntos eu poderia me trancar num quarto, ficar no jardim, sair correndo, chamar a polícia... Mas com a corrente, tudo é vão. Aos 35 anos, Julieta tem dotes sádicos. Quer a garantia do pertencimento, mesmo desamado. Tornei-me uma daquela almas russas que trabalhavam nas fazendas dos grandes proprietários no século XIX, descritas dolorosamente por Dostoievski em seus grossos romances. Eu sirvo ao deleite de Julieta. Nem conta mais com meu trabalho na empresa, faz tudo sozinha. Quando tenho fome e quero buscar uma maçã ou um copo de leite na cozinha ela se planta no sofá  da sala e não cede a alguns passos para que eu alcance a geladeira. Quando preciso dormir, resolve lavar as violetas velhas do jardim. Nesta vida de condenado passional sinto-me como essas pobres flores que não têm mais nem um solidário colibri. É o alijamento forçado, um exílio em solo pátrio. 

Já pensei em me matar, mas não tenho coragem. Por esses dias andei pensando. No fundo, deveria ser um orgulho estar acorrentado a Julieta. Ela é linda com seus lábios rosáceos sempre ameaçando contrações laterais. Mas não me beija mais! Seus cabelos ondulados, arruivados, sempre semi-molhados, não posso tocar e, quando tento, logo ergue o punho ameaçadoramente, com aquela argola espelhada que envolve seu pulso e dá início a essa pungente corrente da desilusão. Os olhos verdes-claros, pulsantes, cheio de vida e fúria, quase não me olham. Nem por migalhas sofridas e um espasmo de afeto

Não quero violentar Julieta. Nos primeiros dois anos de correntes fomos muito felizes. Essa lembrança, acorrentada na alma, me faz recuar de qualquer desatino. O que eu preciso é de uma corrente positiva, de um sopro divino, para que ela volte a me amar e me desacorrente. Para vivermos um amor livre, em chãos de giz. É um drama corrente na minha vida!

domingo, 11 de agosto de 2013

A rosa de uma semana inesquecível

A rosa de uma semana inesquecível

(Texto livremente inspirado na música Cajuína, de Caetano Veloso)

A pequenina rosa desde aquele dia adornava sua sala. Era uma companheira, com sua vermelhidão viçosa e suas folhas de lembrança. Recebera o presente na despedida, em que a lágrima nordestina não se turvara, reluzia num misto de esperança e dor. Enquanto o fruto da terra e do amor permanecesse vivo, o elo emocional sobreviveria.

Aquela ideia machista, tradicionalista, da flor ser entregue pelo cavalheirismo masculino fora rompida naquele gesto. No dia que partiria, Suzana recebeu um caloroso beijo, um abraço eterno, sentiu as lágrimas dele deslizarem pelo seu rosto áspero e um copo de cajuina, aquela preciosidade piauiense. Aqueles instantes suas memórias se embaralhavam enquanto olhava para os olhos dele. Foram dias inesquecíveis, de pulsação carnal e amorosa inéditas em sua vida. Quando então ele foi ao canteiro e puxou a pequena rosa, tão nua e elementar, Suzana perdeu o ar. A ternura do gesto, a beleza simples e clássica do pomo terreno, um presente vivo, a delicadeza daquele homem, tudo fez a sua alma desabar. Viu que era um homem lindo, mas a vida fina, fininha, que às vezes impede a estufar da relação.

Foi uma semana de profundo deleite. Em férias, Suzana resolveu conhecer Teresina, uma das únicas capitais nordestinas que ainda não conhecia. A única capital de um estado da região que não está na margem atlântica, sem praia. portanto. Logo na chegada, no almoço em um restaurante próximo ao hotel, também perto do Rio Parnaíba, em um calor de fazer jus aos trópicos, conheceu Roberto. O destino dava sua piscadela. Estava só também, sentado numa mesa vizinha, devorando uma miscelânea de crustáceos doridos. Ela pediu um guardanapo e recebeu em troca um sorriso plácido, com as faces ruborizadas. Roberto perguntou seu nome, disse que era teresinense e poderia mostrá-la as belezas locais naquela semana, já que, por essas coincidências da vida, estava também em férias. Roberto elaborou uma agenda dedicada ao turismo de Suzana. Assim deu-se o encontro.





Nas semanas seguintes ao retorno, a rosa soprava a memória para ela. Estava num vasinho bem ao lado da televisão. Continuou conversando com Roberto, favorecida pela tecnologia e a disposição. Tinha fotos que tirara ao seu lado nos passeios pela igreja de São Benedito, no bairro Ilhotas e outros cantos da cidade agora distante. Os  milhares de quilômetros que separavam São Paulo de Teresina não distanciavam seu coração. A doçura de homem, seu sotaque romanesco, sua acolhida, as noites de amor e o sabor da cajuína ensopavam sua nostalgia.

Haveria um reencontro? Na vida adulta a independência não deveria dar asas ao amor e romper barreiras? Ela, médica, paulistana, com consultório, não poderia largar tudo e mudar-se para Teresina? Ele, um comerciante quarentão, sem filhos, não teria o ímpeto da migração passional? Foi tudo tão rápido, a oferta de atenção turístico-amorosa, a estupefação da descoberta de uma paixão repentina, os silêncios após o sexo voraz, as bocas molhadas, não deram tempo para a projeção. No dia da despedida, quando esteve na casa de Roberto pela primeira e única vez, quando a clarificada cajuína umidificou sua garganta e a rosa foi ofertada, houve um longo silêncio carinhoso. Em nenhum momento promessas foram feitas. Havia apenas uma cumplicidade na mirada reciproca. Suzana como que agradecia a Roberto pelos dias gloriosos e originais. Roberto respondia, sem palavras, apenas com o marrom dos olhos, na doçura do encontro. Um dia não haveria mais a rosa, que murcharia com o crepúsculo do tempo. Mas no jardim de sua saudade sempre piscaria a intacta lembrança de uma perfeita semana em Teresina. Pois não é a isso que se destina a existência?

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Brincos, piercings, pulseiras.. cupidos da alma feminina

A lista de ornamentos-cupidos é enorme. Pingentes dourados ou prateados, brincos circulares ou retilíneos, pulseirinhas bordadas com esmero, tiaras que dão ar de meninice, fivela que inclina os cabelos.. Como são apaixonantes nas mulheres as pequenas peças. Eles desvelam a alma do charme fatal, o toque de midas passional. Dos objetos vêm a flecha que fere o coração descuidado. A graciosidade é pontual, não precisa de muito esforço.

Tiaras e fitinhas nos cabelos lideram a minha lista. Elas rejuvenescem, dão o ar de meninha que no fundo toda moça tem. Elas adocicam até as mais salgadas, num lírico feitiço e aviso: toda mulher tem seu encanto sintetizado em artesanatos e ourivesarias.

E os brincos? Afora aqueles escandalosos, que transmutam qualquer beleza em peruzice, há os capazes de fazer da orelhinha a reverência de um candidato a amante. Uma estrelinha, um ponto azulado ou um pedaço de ametista prometem mil e uma noites de amor. Por onde pode entrar o sussurro nas noites cálidas há, na borda, a mais singela prataria. Visionário foi Johannes Vermeer, que teve na moça com brinco de pérola sua pintura eterna. Moça que, com o pingente, Scarlett Johanson desfilou no cinema.

A moça com brinco de pérola, do pintor holandês Vermeer, vivida pela estonteante Scarlett Johanson

Eu já me apaixonei por calcanhares cingindos de poesia. A poesia de uma correntinha sem frufru, isônomica em sua repetição de furinhos harmônicos. O osso lateral beijava o bronze e em mim promovia escandalosa hipnose. Com quantas peças se faz um sonho masculino! As pulseiras merecem uma idolatria à parte. Elas e os braceletes, com especial devoção àqueles que mordem o antebraço, a parte mais frágil dessas amas nossas. Há aquelas que usam um batalhão delas, escondendo fragmentos de pele branquinha ou ensolarada. Sequência metálica convidando para a atração fatal. No abraço, o som da música que diz: "Vem sonhar o meu sonho, meu bem!". As pulseiras solteiras têm ainda mais valor. candura rara, evidenciam ainda mais o torso do antebraço,

 Mel Lisboa e um piercing que acaba com qualquer chance de desencanto. 

Os piercings são outros imãs fatais. No meu cardápio predileto desponta o brilhantinho ou pingentinho na lateral do nariz, à Mel Lisboa, compondo música na rima com os olhos verdejantes. Não há mulher que não fique letal com um deles. A composição não permite palavras, apenas um batimento mais acelerado do coração. É um detalhe, um minúsculo, ínfimo detalhe que faz toda a diferença. Se Deus está nos detalhes, ele abriga-se nesse minifúndio do rosto feminino.

Por fim, não poderiam faltar os apliques que abrem alas aos famosos rabos de cavalos. Esses, meus suscetíveis amigos, são os presente mais divinos. São o néctar e ambrosia que o olimpo nos relegou para nos aproximar dessas afrodites. Graças a eles temos a mais perfeita ordem estética. Livram a nuca dos fios, apenas recheado por um cacho bem fornido. Peles morenas, mulatas e claras desfilam com graciosidade sustentadas por ombros delicados. É a parte desfrutável aos olhos de uma mulher que se revela e depois se nega.

As peças que os olhos veem o coração sente. Não há razão, circunstância e argumento que sobreviva aos íntimos ornamentos femininos. Gracias aos céus!

"Hoje é dia de visita, vem aí meu grande amor. Ela vem toda de brinco, vem todo domingo, tem cheiro de flor" (O velho francisco, Chico Buarque de Hollanda)

terça-feira, 7 de maio de 2013

A falta de brilho em uma mente sem lembranças


 Joel (Jim Carrey) e Valentine (Kate Winslet) 

"Me esquece!". No auge de uma separação, em meio ao furor, essa frase surge clássica nos rompimentos amorosos. O pedido para que o outro apague tudo da memória, todos os anos de relação intensa, de amor profundo, de tempestades e bonanças. O berro dolorido é um desejo, um urro, uma prece de suposta libertação. Apague-me da sua memória, eu te apago da minha e então a vida se apaziguará. Mas bem sabemos que concretamente não é possível estalar os dedos ou dar uma piscada e, assim, derreter de nossa caixa craniana alguém que conosco viveu intimamente. E o que aconteceria se fosse possível arrancar da memória, como um pen-drive que retiramos do computador, o conjunto de experiências afetivas que tivemos com alguém?

Esse questionamento me vem por ocasião de mais um novo mergulho no lindo e denso filme "Brilho eterno de uma mente sem lembranças". Um filme que me aprisiona e apaixona. Nele, o casal Valentine (Kate Winslet) e Joel (Jim Carey), que vive um relacionamento tumultuado pelas extremas diferenças de temperamento, passa pelas mãos de um cientista que, com uma máquina que mais parece um secador de cabelos daqueles de salão de beleza de dondocas, faz sumirem as lembranças do que um viveu com um outro. Mais que isso: deleta qualquer memória de um em relação ao outro. Eles passam a não ter existido mutuamente.

O primeiro impacto para quem vê a situação de fora é a angústia de assistir à duas pessoas que compartilharam por determinado tempo a vida se toparem com indiferença - angústia que é ainda maior quando o primeiro encontro se dá em mercado e apenas um dos lados já teve a memória sugada. O outro, no caso Joel, vive a tenebrosa experiência da máxima indiferença da mulher que o desconhece - ok, isso acontece muito mesmo com a memória intacta em reencontros de ex-casais, mas têm o 'alívio' da dissimulação, de ser um fingimento no desprezo. No caso, não havia teatro, mas mecanismos neuronais que levaram ao desconhecimento de um pelo outro.

E qual a razão dessa angústia toda? Simples: a vida para nós é um inteiro, desde que nascemos até a morte. Mutilar uma parte dela e jogar na lata do lixo, como se fosse um pedaço de carne podre ou restos de entulho, não é natural. Daí o desamparo de familiares com entes que sofrem do mal de Alzheimer e não lembram de episódios representativos ou mesmo de pessoas. Em um filme francês que vi recentemente, Se souvenir de belles choses (Lembranças de boas coisas, em tradução livre), uma mulher chega a estapear, desesperada, o marido que sofre da doença e não se recorda dela. É uma espécie de morte em vida. E se somos um acumulado de experiências e elas é que moldam nossa personalidade e nossa visão de mundo, retirar um trecho é como manipular nossa identidade.

A cultura da felicidade, estampada a todo momento nas inserções publicitárias, ignora - por razões óbvias - que frustrações e dores são componentes da formação do indivíduo. Se pudéssemos simplesmente extraviar todos os momentos ruins de nossa memória, então não seriamos humanos, seriamos alguma outra coisa.
No filme, quando Valentine e Joel escutam as fitas em que relatavam ao cientista o porquê de querer ter a lembrança do outro eliminada o espanto e a expressão de desencontro deles é simbólica. As suas trajetórias lhe foram roubadas.  Eles ouvem as críticas que se fizeram e não entendem como puderam falar aquilo se não lembram de nada da relação. É incrível pensar como é importante para nós a lembrança. E não apenas por essa função formadora, mas também porque é a história do individuo, suas nostalgias, seu carimbo na face da terra.

Ninguém gosta de sentir as dores emocionais. Mas elas fazem parte do processo de humanização. Algum dos filósofos gregos, cujo nome não citarei por não estar certo de qual deles, questionou: Como posso conhecer a alegria se desconheço a tristeza? Uma mulher ou homem traido, por exemplo, poderiam livrar-se do desemparo da situação simplesmente ejetando-a da sua cabeça, caso o aparelho do filme existisse de fato. Mas ao passar por isso, lesariam sua trajetória e não teriam a experiência como trunfo para a sequência da vida. Assassinariam sua própria estrada. Seria uma espécie de suicidio parcial. Eu ouso dizer que o uma mente sem lembranças não teria brilho nenhum, pois seria uma mente morta.

Para dar título ao filme, o diretor francês Michel Gondry e o roteirista genial Charlie Kaufmann usaram um trecho de poema do inglês Alexander Pope. Um poema intitulado Eloisa to Abelard - uma história de um padre que se envolveu com uma protegida no século XII, na França, e acabou castrado. O pedaço que serviu de inspiração traz a mensagem:

"Feliz é a inocente vestal; Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida. Brilho eterno de uma mente sem lembranças; toda prece é ouvida, toda graça se alcança"


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Haneke filma o amor em estado de dor e faz reality show puro



Michael Haneke é o diretor do incômodo. O primeiro filme que vi dele, "Violência gratuita", me fez sentir um permanente estado de mal-estar e apreensão, do início ao fim. Foi difícil conciliar o sono naquela noite. O fetiche dos protagonistas pela tortura, a perda da segurança, os surtos violentos, é tudo muito angustiante, de deixar os olhos endurecidos. Em 'Cachê' o subproduto é idêntico. A câmera estanque na porta a mostrar movimentos suspeitos na rua, a cegueira diante da própria culpa. "Código desconhecido", "A professora de piano", "A fita branca"... Suas histórias, seus planos de filmagem são um convite ao desnudamento da nossa impotência. Ele expõe a miséria humana, a essencial, não material, com acentuação.

Isso volta a acontecer em "Amor", filme que recebeu cinco indicações ao Oscar e destacou-se no último festival de Cannes. Um casal de artistas octogenários têm a sua paz matrimonial, a sua felicidade deseternizada com o declínio da saúde da mulher, vivida majestosamente por Emmanuele Riva - que fez lá no passado o clássico Hiroshima, meu amor. A partir da doença, a instabilidade emocional, o atordoamento, tomam conta. E o filme é tomado pela narrativa dessa decrepitude. A decrepitude da existência, que chega sem aviso e escreve no outdoor o pensamento budista: "Vida é sofrimento".

A questão é que o filme não recorre a truques emocionalistas, não propõe um compadecimento da situação por meio de recursos incentivantes, tal qual música, frases de efeito. Ao ser cru, ao sufocar o espectador no apartamento do casal, Haneke dá o aviso tácito: é isto que acontece. É como se fosse de fato um documentário, um Big Brother do padecer de marido e mulher. É como se o cineasta dissesse a nós todos: "Vocês gostam de reality show? Que tal um sobre a nossa pobre e real condição?". É um trança pé que ele nos dá, isso sim é a vida real, por mais que nos recusemos a aceitá-la.


Se o velho músico, interpretado também com sofisticação por Jean-Louis Trintignant, fica diversas vezes atônito com a nova realidade, mostra uma paciência melancólica no cuidar do seu amor (e daí que o título simples e direto é categórico e sintético do que o filme propõe, pois fala-se de amor em múltiplos sentidos), a esposa vai definhando com a doença em sua inaceitação. Se antes ela tocava Schubert no piano, agora o derrame vai paralisando seus braços e assim matando suas expressões. O monólogo do marido diante da esposa emudecida, com o olhar vago, na primeira cena em que a doença se insinua, dá a dimensão da tragédia abrupta. As insistentes perguntas de um desamparado senhor: "Qu'est-ce que se passe?" (O que é que se passa?) tamborilam. Elas transitam no cartaz do filme, quando o semblante de Anne está estanque.

Ao não emocionalizar a trama, Haneke nos coloca frente a frente com a vida crua. Esse é seu cinema. Olhamos para ele como se olhássemos para um espelho do qual normalmente queremos fugir. O espelho que reflete nossas fragilidades, a fragilidade da vida. Algo que foge do nosso controle, como o mal físico que chega silencioso e insidioso, interrompendo nossa presumida felicidade. Anne, a mulher, dividia cotidianamente prazeres intelectuais com o esposo George, algo que a doença ceifa de suas vidas. As idas a concertos (na primeira cena, como se para dar uma pilula de como era a vida cultural deles, se dá numa sala de concerto com a câmera fixada na plateia) são abolidas. A alegria do compartilhamento vai minguando e surge então a doação como o novo condutor amoroso. Se por décadas o casal desfrutou da companhia um do outro por meio da cultural, agora Anne recebe a dedicação integral do marido à sua saúde, com a água, que ela infantilmente tenta recusar, dada na boca.

Haneke usa eloquentes silêncios como forma de deixar a audiência aflita. No meio da noite, o rosto de George pensativo, paralisado pela nova realidade, é filmado longamente. No meio de outra noite é a vez de o rosto de Anne ser a paisagem, com o pavor da morte à espreita. A tentativa de George de capturar uma pomba que entrou na casa, centro do filme, é um momento de massacre da alma.

É possível ver o filme como um mal em si. A vida é difícil, mas para quê enxergar isso tão claramente. Não seria melhor não pensar, como escapistas? Mas também é possível ver uma lufada de esperança. A esperança gerada pelo amor. Os conflitos são nossos parceiros desde a infância e conosco caminharão até o último suspiro. Ao mostrar isso, Haneke nos tira da zona de conforto e nos leva para os recônditos da nossa realidade.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Confidências de um (quase) paulistano




Tomo emprestado "Confidências de um Itabirano", do Drummond, para, no dia do aniversário de São Paulo, manifestar  meu amor pela cidade.

Confidências de um (quase) paulistano

"Por alguns anos venho vivendo em São Paulo,
mas não nasci em São Paulo
Por isso, aprendi a ser forte, orgulhoso, de concreto
Noventa por cento de cultura nas calçadas
Oitenta por cento de imigração na alma
E esse alheamento de tudo que na vida bucolismo e mansidão

A vontade de aprender, que me tumultua as ideias
vem de São Paulo, de suas noites luzidias, com jazz na Paulista e com gritos no Ipiranga

E o hábito de correr, que tanto me emerge
é agridoce herança paulistana

De São Paulo trouxe conquistas diversas que ora te exponho
este condomínio caro, futura deseconomia dos meus bolsos
estas meninas do Ibirapuera, e suas bicicletas esguias
estes cinemas de ruas, sobreviventes do capital desvairado
este orgulho, esta cabeça tresloucada

Tenho amigos, luas e fumaças
Hoje sou um santista paulistano
São Paulo é mais que uma fotografia na parede
E como rói"

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Django, a nova investida vingativa de Tarantino



Quentin Tarantino gosta de filmes violentos. Disse isso em várias entrevistas. E onde há vingança, há, no mais das vezes, algum tipo de violência, mesmo que psicológica. No caso do diretor, ela passa naturalmente pela violência física, descomunalmente exagerada. E assim, no coito entre violência e vingança, ele segue fazendo seu cinema de assinatura gritante. Com o uso meticuloso da música, a câmera lenta, as poses de heroismo, segue cativando os fãs, como eu. Em Django Livre a fórmula segue viva, pulsante. E parece dar sequência a Bastardos Inglórios na linha redentora dos maltratados históricos. No caso anterior eram os judeus que viviam a catarse de ver nazistas sendo escalpelados e satirizados. Agora, são os negros americanos que seviciam brancos em uma forma de "redenção" pela escravidão sulista praticada no século XIX.

Curioso é sair do cinema com a sensação de densidade em um filme tão cômico. Porque, meus amigos, a violência é tão exagerada que gera risadas. Tiro que faz uma moça voar de costas, sangue jorrando - recurso mais utilizado nos dois volumes de Kill Bill -, disparos em sequência, e plateia rindo alto. Claro, há cenas de violência mais crua, á moda daquela do MR. Blonde (Michael Madsen) torturando o policial e arrancando-lhe a orelha direita em Cães de aluguel. Cachorros devorando um escravo em Django dão aflição, assim como o personagem de Jame Fox pendurado num pau de arara prestes a perder os testiculos. Mas as cenas de tiroteio, por exemplo, são um extermínio gozadíssimo. Dizem que a intenção era de prestar uma homenagem ao western spaghetti de Sergio Leone, de quem Tarantino sempre se disse fã. Mas o ritmo não casa com o que o italiano fazia, com aqueles faroeste de personagens caracterizados de pontaria precisa, cruel. Mas as caracterizações de Clint Eastwood (especialmente em Três homens em conflito) e Charles Bronson (Era uma vez no Oeste) não guardam constatção. Há cenas que minetizam isso, mas a velocidade é outra. Os pistoleiros não tem o mesmo olhar presunçoso. Isso não é mérito nem demérito, é constatação. A música de Ennio Moriconni sustenta pouco o filme, já que divide o espaço com rapp e outras firulas.

Tarantino brilha nos detalhes, em que, como diz o provérbio, está Deus. Mas no caso dos seus filmes nos detalhes é puramente isso, detalhe, simples e hipnotizador. E o genial Cristoph Waltz tem se mostrado o ator certo para exercer esse detalhismo. Se em Bastardos Inglórios ele se expressa em cenas como a que oferece creme para a judia francesa colocar no strüdel e o silêncio paira enquanto joga as colheradas, em tensão opressiva, em Django há momentos como em que o mesmo ator, agora investido de uma mescla de  vilão e herói, vai servir cerveja e "raspa" a boca do copo duas vezes, em cenas que também são acompanhadas de mutismo. Lembram-se daquele pedaço de madeira que batuca na cena final de Kill Bill volume 1? É mais um exemplo dessa artimanha que naturalmente enfeitiça a audiência.

Na teia de vinganças, que dá a quem assiste uma sensação de redenção (desde que o espectador não seja um neonazista ou defensor da escravidão, evidente), também há o recurso da sátira. Do destroçamento pelo ridículo. Isso se manifesta quando uma turba de brancos escravocratas monta em cavalos com sacos brancos na cabeça, à moda Ku Klux Klan (movimento racista do século XX), e protagoniza uma dantesca discussão sobre o incômodo dos buracos para a vista. O bisonho, o mínimo, é o mesmo que acontece em Cães de aluguel, primeiro filme de sucesso de Tarantino, em que os ladrões discutem as reais intenções de Madonna na música "Like a virgin".

A vingança praticada com sadismo e filmada com esmera a receita-chave do ótimo cinema de Tarantino. 


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Dúvida desfeita ao amanhecer



Chovia muito forte, aos cântaros como dizia sua avó, e ela olhava hipnotizada os pingos que escorriam pela janela. A noite tinha sido frenética, repleta de novidades, a começar pelo homem ali, estirado na cama, que dormia pesado como chumbo. Mas para ela as noites de amor eram assim, sempre prenhes mesmo de novidades, pois vivia de sexo casual, não conseguia emplacar uma mísera relação. Sofria com o que um amigo apelidou de "síndrome da não-repetição". Não conseguiu pegar no sono e se mandou pra sala.

Tomou a liberdade de vasculhar a geladeira, raptou uma maçã e sentou com as pernas cruzadas no sofá. Ali espiava o gotejar na sacada, com o pano de fundo da noite paulistana repleta de luzes nos edifícios.
A cabeça doia um pouco, fruto da mistura de vodkas em série com o baile de pernas e braços voluptosos do exercício vital que praticou com aquele rapaz. Não sabia o nome dele, até desconfiava que tinha lhe falado durante a dança, já no cume da embriaguez mútua. E, depois, com os lençóis remexidos, a memória lhe trazia alguma coisa suspirada. Mas o esforço era vão.

Viu que no hack dormitavam alguns retratos dele mais jovem, com uns, supunha, 22 para 23 anos. Agora devia ter uns 15 a mais, já flertando com os 40. No retrato ostentava o rosto liso, barbeado, o opostos daquele que dormia com uma barba cerrada, já um pouco judiado e, para ela, mais másculo. Voltou a olhar os pingos e refletir sobre a vida, a indecisão, a surpresa. Era um baile de coisas. Ouviu um pequeno resmungo do homem, um "aqui não, aqui não".

Foi até lá, viu que o silêncio regressara e voltou para a sala. Provavelmente estava sonhando. Pensou em ligar a TV, dispersar-se do chacoalho ritmado da chuva, mas achou melhor não. Podia acordar o amante de ocasião e, sóbrio, vai que ele se indignasse e tivesse uma reação violeta. No fundo queria que ele acordasse e lhe contasse coisas da sua vida, abrisse alguns segredos. Não queria ir embora assim, trafegando num túnel repleto de incógnitas e aquela dúvida que vinha se eternizando relação após relação:

- Será que vai me ligar? Ao menos para dizer que gostou da noite e quer repetir? Ou me convidar para um jantar romântico, talvez..

Nas últimas três vezes deixou um bilhetinho ao lado da cama e nenhum dos desnaturados teve a honradez de dar um "alô". Tinha prometido que não iria mais repetir aquele roteiro, mas já havia fracassado no trecho principal. Culpava a bebida, a vulnerabilidade emocional, as duas juntas, nenhuma delas.. Era um poço sem fundo de perturbações. Lembrou da amiga que falava no hedonismo, no prazer desassociado das necessidades emocionais. Mas depois a sensação era sempre a mesma, não conseguia separar tão friamente assim:

- Não vai me ligar e eu vou me danar.Minha autoestima irá para o buraco e tudo recomeçará.

Voltou a mirar as lágrimas pluviais e pensar antes de tomar o rumo de casa. Será que não valia esperar amanhecer, comprar pães, suco, café e recepcioná-lo como se o apartamento fosse seu. Inverteria o sentido, o surpreenderia e assim teria chances de transformar aquilo num primeiro encontro bem-sucedido. Ou então simplesmente esperar, deitar ao seu lado, tentar conciliar o sono e ver o que aconteceria ao amanhecer. Ainda sentia um pouco de tontura alcoolica e guardava o cheiro dele no corpo. No fundo queria repetir a transar, queria sentir aquela pegada novamente, o suor, as expressões, stava com o tesão escorrendo. Resolveu tomar um banho e acalmar os instintos.

Depois da ducha, tomou a toalha que estava pendurada na porta e, enrolada nela, deitou calmamente ao lado do estático homem. Parecia morto, um faraó estirado na catacumba, nem a respiração era percebida. Ameaçou tascar-lhe um beijo no ouvido, que a ela se oferecia sem resistências. Encostou um pouco e lembrou que nem o nome sabia, ou melhor, esquecera. Veio-lhe à cabeça alguns palavrões que ele soltara durante os gemidos alucinados dela. A dominação, ela gostava. Mas queria amor na sequência. Era isso que vinha esperando há tempos. Seu anseio maior era esse. Diante daquela imobilidade e de sua covardia para sequer triscar os lábios nele, levantou-se novamente da cama. Passeou os olhos pela estante do quarto e viu alguns títulos que sugeriam os gostos do rapaz. Viu Bukowski, Kerouak, João Ubaldo e Hemignway.

Aquelas atitudes sexuais rimavam de certa forma com o que sabia daqueles escritores. Ao menos do trio estrangeiro, mais seco, ríspido, não dados a firulas. Tentava assim desvendar um pouco do parceiro de poucas horas. Seria ele um bebedor rotineiro? Um boemio de carteirinha que fizera dela mais uma presa. Nas fotos que vira na sala não apareciam outras pessoas. Nas que havia companhia, não era humana, eram cães. E muitos, vários. Ele segurando várias coleiras. Recordou-se daqueles passeadores de perros que viu em Buenos Aires quando por lá esteve. Seria sua profissão? No apartamento não havia animais, ou melhor, ouviu um piar constante e notou uma gaiola no fundo da cozinha. Então era assim: ele e o canário? Um sujeito de meia idade e um pássaro amarelo!

Havia alguns CDs no móvel da sala. A ela chamou a atenção especialmente uma coletânea da Jovem Guarda, com Ternurinhas e Tremendões.

- Mas será possível? - pensou.

Mas se questionou. Será que gostava tanto de Erasmo, Roberto e cia, em gravações dos anos 60, ou se tratava de algum álbum esquecido do pai, da mãe, outro parente ou mesmo de um amigo. Afinal, sempre temos algum objeto dos outros infiltrados entre os nossos. É comum. Até porque aquele era um disco ensanduichado entre Oasis, Led Zepelins e afins. Não fazia muito sentido. Não tinha mais nenhuma companhia que se alinhasse. A investigação por gostos a deixara confusa. Tentou imaginar aquele homem de olhos redondos, negros e firmes, e voz rouca alucinada, que nunca dizia o "s" dos plurais (pelo menos naquele noite, berrando "eu sou o bom, sou o bom, sou o bom!". Não, não casava. Mas como tentava afugentar rótulos da sua cabeça, decidiu que não se fixaria mais nesse tipo de miudeza.

As horas passavam, ela observava e nada de ele esboçar reação. O sol despontou, a chuva cessou e ela resolveu descer para tomar um ar e, quem sabe, tomar coragem para comprar os insumos do café da manhã que projetou. Não ía mesmo embora. Se tivesse que tomar um pé na bunda que fosse olho no olho, mesmo que por indiretas, nada de silêncio, submisso, falta de rastro. Admita tudo, menos as mesmas cenas já tão testadas e desaprovadas.

Ao passar pelo portão do prédio avisou ao porteiro que voltaria.

- Estou no 44, só vou comprar umas coisinhas e já volto - disse, acompanhada por um simpático aceno positivo.

Na padaria, olhou, olhou, olhou e desistiu. Não comprou nada. Poderia pagar um mico com sequelas muito forte. Resolveu retornar ao prédio. Na portaria, ouviu:

- A Valquiria já subiu.

Fez cara de espanto, mas segurou a onda e fingiu que conhecia.

- Ah sim, claro!

Mas sua cabeça subitamente entrou em parafuso. Em frente ao elevador ficou imaginando quem seria a tal de Valquiria e como reagiria à sua presença. Havia deixado na sala a sua bolsa e uma tiara azul cingida com pequenas madrepérolas. Havia descido apenas com a carteira, que nem usara. Se antes a angústia era para saber qual reação o rapaz teria ao vê-la ainda lá, agora ela ganhava contornos dramáticos com a possibilidade de que a moça (podia ser uma senhora também, não sabia) fosse a mulher dele. Atiraria sua bolsa pela janela? Atiraria nela quando adentrasse o apartamento? O que faria? Seus documentos estavam todos na bolsa, os originais, não tinha como arredar pé. Uma cilada tremenda!

Resolveu subir mas não entrar. Repousou o ouvido direito na porta e, raios, não ouviu nada. Um silêncio profundo apenas. Testou a maçaneta e a porta estava aberta. Empurrou-a devagar e viu que a bolsa seguia sobre a poltrona, no mesmíssimo lugar que deixara, e não havia nada remexido. Foi então que ouviu um pequeno grunhido rouco de prazer.

- Meu Deus, eles estão transando. O cara é uma máquina! E eu uma palhaça.

Pegou a bolsa e foi saindo de mansinho. Mas recuou. A curiosidade, aliada às traumáticas experiências anteriores, teve peso maior. Foi chegando perto do quarto, viu que a porta estava encostada, empurrou lentamente e notou que a moça fazia calmamente uma massagem no homem, que permanecia incrivelmente na mesma posição que estava quando ela desceu para buscar a comida do café que não aconteceria. Observou que ela  ouvia música, pois carregada fones nos ouvidos. E apertava músculo por músculo dele com bastante força, brutalmente. Ele estava nu em pelo e ainda guardava  o forte odor da transa de horas atrás. De repente, a moça, que tinha mãos repletas de veias grossas e potentes, estufadas, começou a tirar a roupa. Os dedos eram longos e carnudos, passando ao largo da feminilidade. O rapaz se remexeu um pouco lateralmente, mas permanecendo de bruços e, agora, com as pernas afastadas. E qual nao foi seu susto ao entrever o membro ereto da massagista, que na realidade era o massagista, e ficou ali, apoplética, enquanto ela, ou ele, que tinha seios notáveis de travesti penetrava bruscamente o rapaz. Só deu tempo de escutar um "Ou". Puxou a porta de volta, ajeitou a bolsa e pensou, ainda atônita:

- Cada um que me aparece.

Escreveu o bilhete com seu nome e telefone e deixou ao lado da televisão. Saiu do apartamento convicta de que é sempre bom esperar o dia amanhecer para que as coisas se revelem sem emudecer do telefone.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Tragédia na Torre Eiffel



Passou a semana inteira tentando acalmar a aflição. O medo de avião era tremendo, seu companheiro contumaz, a ponto de paralisar o trabalho e deixá-lo com a sensação de que caminhava linear para a sepultura nos dias que antecediam o embarque. À noite, em casa, usava ferramentas de pesquisa na internet em busca da impossível certeza de que um motor não pegaria fogo, um urubu distraido não invadiria uma turbina, o piloto não tiraria um cochilo na cabine ou um fanático religioso não sequestraria a aeronave e a jogaria de encontro a um alvo capitalista qualquer . Pensou em tomar soníferos ou um porre daqueles para ao menos anestesiar o pânico. Mas leu que poderia ter efeitos colaterais pesados nas alturas e abortou a ideia. Buscou entrevistas com pilotos experientes que nunca sofreram nenhum revés, testemunhos de quem foi perdendo com o tempo o pânico e estatísticas dessas várias que garantiam ser o avião o mais seguro dos meios de transporte perdendo apenas para o elevador. Mas até nesse dado encontrou motivos para inlfacionar sua paúra. Já havia ficado várias vezes preso com o ascensorista no prédio comercial em que trabalhava. Em uma das ocasiões a caixa de ferro e madeira deu trancos violentos. Se era mais seguro que os aviões, sua mente acovardada já disparava o sinal de advertência. Era um boicote mental a cada tentativa de aplacar a angústia.

A viagem era inadiável. Ou melhor, poderia, claro, cancelá-la, mas com um ônus emocional para ele irreparável. Pois se o fizesse perderia a namorada que tanto amava. Seria uma viagem à moda prova de amor. Após trocar beijos com uma amiga dela, em um episódio mal parado, a exigênciada amada para ter um perdão era travar um duelo com sua fobia em nome da salvação amorosa.

- Para provar que me ama, você irá fazer uma viagem de avião comigo. Só assim acredito no que você tem aí dentro. Não quero nem saber!

Palavras duras de fato. Coisas de mulher magoada. Ele logo lembrou da "malícia de toda mulher" sussurada por Noel Rosa no disco de vinil que seu pai preservava. Ela demonstrava ainda querer ficar com ele, mas precisaria de uma ação impactante, um gesto grandiloquente, nada de quixotices em moinhos de vento. Após dois anos de relacionamento, sabia que Flávio temia os aviões como ela as baratas e lagartixas. Como ele estava em desvantagem na situação e havia chorado copiosamente quando ela dera termo da relação, Luana recorreu à fobia do rapaz como forma de reabilitar as coisas. Foi inclemente, terminante. E não se sensibilizou quando ouviu dele, que fazia caras e bocas chorosas, em discussão na sala de sua casa:

- Você vai fazer isso comigo? Vai me colocar na fogueira dessa maneira. Você sabe a porra do medo que tenho desses troços voando. Não lembra como fico antes de viajar? Podemos fazer um cruzeiro romântico pelo litoral brasileiro, que tal? Com jantares à luz de velas, um velhinho tocando canções clássicas no acordeón especialmente para nós, vinho, comida far....

- Flávio, você é muito cara de pau - interrompeu ela - Não quero saber de viagem romântica coisa nenhuma. Quero que prove o amor. Passeiozinho assim é moleza fazer e não prova droga nenhuma. Para isso, tem que topar viajar de avião comigo. E não é viagenzinha vagabunda não, tipo ponte Rio-São Paulo ou coisas desse tipo, curtinho, indolor, que nem sente. Quero ir para a Europa, viajona, mais de dez horas no ar comigo. Eu, você e esse medinho teu aí. Se fizer isso, aí sim eu perdoo essas sacanagem que você fez comigo e a gente continua junto. Ou então ficará sem mim e com esse seu pânico tolo aí - desdenhou.

Flávio emudeceu, mas por dentro suas vísceras adquiriram feições enraivecidas, estavam como carne viva entubada. O dilema era enorme porque Luana era a razão de seu viver, tinha convicção disso Nutria ali uma aversão por si mesmo, pelo beijo furtivo que dera na amiga em um momento de embriaguez. Tudo se passara num bar da São João, quando Luana foi ao banheiro e Beatriz, a amiga, aproximou-se com os lábios e, na versão dele, tascou um beijo. E nem imaginava que ela ainda contaria para a namorada com versão deturpada e diria que ele é que lhe dera um "beijo forçado". Tudo se misturava na sua cabeça, que começava a pesar, a latejar e arrastar-se em fúria. Começava a não ter dúvidas de que precisaria encarar aquela viagem probatória. Viver sem Luana traria sofrimento demais.  Como era muito projetivo, já imaginava não suportar vê-la com outros homens desfilando pela vizinhança.

Antes de iniciar sua rotina de respostas arrefecedoras do medo, porém, ainda bolara um outro plano para dissuadir a amada. Uma tentativa final, um último apelo. Ignorando não ser ela muito feita a métodos romanescos à moda antiga, contratou dois seresteiros para se plantarem na porta de sua casa, no bairro italiano da Mooca, e cantar meia dúzia de cantigas de dor de cotovelo e romanescas . Ainda na vigília do sono, ao ouvir o fraseado de Roberto Carlos quase teve um colapso nervoso. "Nosso amor é assim, pra você e pra mim, como manda a receita! Nossas curvas se acham, as formas se encaixam, na medida perfeita". Conseguiu distinguir a voz rouca e desafinada de Flavio e, de camisola, como nas cenas tradicionais, abriu a janela e achou não sabia se era delírio ou verdade. Ao deparar com os dois senhores de fraque e viola ladeados por Flávio, com cara de cachorrinho submisso, ficou vermelha. Não encarnou Rapunzel nem Julieta, mas se assemelhou à "Moça da cidade" que seu pai também ouviu, "que quer dormir impunemente". Fez um meneio negativo com a cabeça, bateu as janelas com força e fez cessar a cantoria que acordou as redondezas.Flávio ficou lá, com cara de parvo, olhando para o vazio prenhe de aviões.
No dia seguinte, logo cedo recebeu uma ligação de Luana, que logo trombeteou:

- Flávio, se você recorrer a mais algum método ridículo de reconquista nem mais viagem de avião vai adiantar para reatar as coisas. Tô ficando de saco cheio! Ou você compra logo essas passagens ou nunca mais vai me ver nem pintada de marrom.

E, pá, desligou o telefone.

Era melhor mesmo não insistir. Com esses gestos "fáceis" de reconquista estava afundando cada vez mais. Sua fúria era tamanha que queria fazer um bonequinho de Beatriz e picá-la sofregamente. De nada adiantaria, claro, mas seria uma forma de destilar sua ira na amiga desagregadora. Teria que encarar aquele medo todo, enfrentar nuvens, turbulências, barulhos tétricos e passageiros falantes que insistem em desdenhar do pavor alheio. Comprou as passagens para o fim de semana, reservou hotel no centro de Paris, assim como passeios no museus do Louvre e de Orsay, uma noite no Moulin Rouge e outras maravilhas.

Sua mente pessimista, porém, achava que não chegariam ao destino. E se chegasse, o avião cairia no Senna ou sobre o Monmartre. Havia viajado de avião algumas vezes, todas elas a trabalho. O mais longe que tinha ido era a Buenos Aires, quando defrontou-se com uma turbulência tão extraordinária que comissários de bordo não conseguiram servir os lanches e tiveram que sentar-se, uma garrafa de coca-cola foi parar no assoalho e a uma senhora na poltrona à sua frente teve incontinência urinária. Naquele dia rezou pais nossos e ave marias aos quilos, como jamais havia feito, nem mesmo nas idas ao confessionário durante o Catecismo e nas sessões de novena que sua tia promovia em casa. O abandono à crença perdia para o desespero de causa. No limite existencial, passava de ateu a cristão dos mais devotos.

Na véspera da viagem, um sábado, nao conseguia ficar parado. Não podia ver Luana, que, na sua malignidade de mulher ferida, havia estipulado a condição inflexível de que se encontrariam apenas no aeroporto e, somente ao sentar no avião, iniciariam o rreflorescer da relação. Moça dura de fato. Flávio havia alugado uma série sobre desastres aéreos e sobre os aeroportos mais perigosos do mundo. A intenção era, num passe de mágica, a poucas horas de subir ao céus, convencer-se de que para estar num acidente aéreo teria que ser azarado além da conta.

Ou ainda, mostrando mais uma vez misticismo de ocasião, se acontecesse é porque assim teria que ser. Não havia ninguém próximo que perdera a vida em episódio assim. Sabia de um pai de uma amiga de um amigo, era o único, isolado caso que tomara conhecimento. O resto, distante, sabia somente pelo noticiário como todo mundo, nada mais. Repentinamente lhe veio à mente uma dúvida: "Por que as asas não rompem no ar? Parece tão fácil com aquela velocidade toda... Ou então, por que não há choques frequentes de aeronaves, já que os voos comerciais são milhares por aí? E ainda: por que pessoas andando para lá e para cá no corredor e comissários de bordo passando com aqueles carrinhos ultrapesados não faziam o avião despencar?" Sacudiu a cabeça, bateu no rosto e tentou parar com aquelas perguntas frenéticas e amadoras sobre o assunto. Estava surtando. Parecia um desvariado. Então, por impulso, ligou para Luana:

- Amor, por que as asas dos aviões não rompem no ar?

- Flávio, e eu sei lá. Tenho cara de engenheira de aviação, cacete?

- E por que aviões não batem no ar como carros nas estradas e..

- Flávio, estou fazendo um bolo com a minha mãe e não posso falar agora. Eu te encontro amanhã no aeroporto. Não esqueça de chegar antes para fazermos check-in e tudo mais. Te amo!

E pá, desligou..

Teve um súbito enternecimento

- Te amo? - pensou.

Aquele foi o único instante nos últimos dias em que sua alma adquiria frescor, sentia então uma inédita calma interna após horas a fio de ebulição.

- Então quer dizer que ela ainda me ama?

Com cara de felicidade desavisada esqueceu por alguns minutos que aquele amor se esfarelaria se ele não enfrentasse a bendita viagem do dia seguinte. Ouvir aquelas palavras depois de algum tempo era como um bálsamo. E então decidiu que até o momento da decolagem esqueceria os pensamentos pavorosos e se fixaria naquele "te amo". Como se fosse possível e ele não fosse escravo do medo. Resolveu rever as fotos que fizeram quiando completaram um ano de namoro. A comemoração veio junto com os 30 anos de ambos, nascidos no mesmo ano e separados apenas por cinco dias. Foi no Parque do Ibirapuera, onde passaram a tarde andando de bicicleta e amaram em paz. 

Quando a noite caiu, foi fazer as malas e o pensamento mórbido regressou.

- Estas malas e roupas virarão pó, assim como eu, carbonizado.

Sentia ódio de si mesmo por ideias tão acintosamente negativas. Estava sozinho em casa, embora morasse com os pais, que estavam no sítio da família, no interior paulista. A mãe o telefonou para dar 'boa viagem' e dizer aquelas coisas tipicamente maternas, tais como: 'Leva bastante roupa de frio que essa época é dura na Europa"... me liga assim que chegar lá... "Não esquece os documentos", e por aí vai... 

Foi comprar pão para o lanche e decidiu que dormiria cedo. Comprou uma cartela inteira de ansiolíticos e tomou numa tragada só, no limite da intoxicação. Queria ter uma noite de sossego e ter que enfrentar sua inquisição apenas na hora em que ela realmente se desenrolaria.

O dia chegou. O toque do despertador era o toque do suplício, um veneno para os ouvidos. Não tinha saída, ía para a sua guilhotina pessoal. Mas viver sem Luana era uma negação do viver. Outro devaneio obscuro logo o assaltou:

- Ao menos morrerei nos braços do meu amor!

No aeroporto, ao mostrar para a agente da companhia aérea seu passaporte, com as mãos trêmulas e suadas, via as pessoas duplicadas à frente. O coração trotava acelerado, sentia pulsação por pulsação, poderia contá-las. Luana, sorridente, não fazia um único carinho consolador e entrou no saguão intimorata, como a mais destemida das mulheres. Soava até como sadismo aquilo tudo. A imagem servia apenas para deixar Flávio ainda mais tenso e incomodado.

- Como ela pode? Como ela pode? - pensava.

Ao pisar na aeronave, gigante, com poltronas em três fileiras, sentia mais vertigem ainda. Não havia dúvidas, em sua cabeça derrotista, que estava caminhando para um cadafalso opcional. Escolheu ter o pescoço tolhido. Para resgatar uma relação, entregava a vida como se fosse um mártir amoroso.

Cintos atados, pernas tamborilando... Enquanto Luana lia a revista da companhia aérea como se estivesse num banco de praça e não perto de perfurar nuvens, Flávio engolia a seco e olhava pela janela. O avião taxeava pela pista e a asa sambava para cima e para baixo. Lembrou de tudo que leu, viu, ouviu e nada o consolava, o encorajava. De repente, o comandante soltou:

- Atenção, passageiro, decolagem autorizada.

Cerrou os olhos com força desproporcional e começou a tentar pensar em outras coisas. Rapidamente passaram por ele as tarefas acumuladas no trabalho, os filmes que queria ver, os livros que queria ler. Mas no meio de tudo isso sentiu uma mão lisa escorrendo sobre a dele o apertando. Era a mãe de Luana, que então o olhou nos olhos:

- Você é meu amor, sabia?

Flávio deu um sorriso amarelo, com tremeliques nas bordas do lábio.

O voo transcorreu sem sobressaltos, embora de tempos em tempos Flávio sentisse ânsia e tivesse que ir ao banheiro. Em uma dessas idas, uma aeromoça, notando o mal-estar, foi ajudá-lo.

- O senhor precisa de alguma coisa?

Ao ver aquela moça esguia, de cabelos curtos aloirados, boca macia e bem curvada, e olhos sutilmente castanhos, teve alguns segundos de leveza.

- Tô um pouco mal porque morro de medo de viajar de avião.

- Calma, calma, é tranquilo. É bem seguro aqui - disse ela enquando fez um discreta massagem em seus ombros e o conduziu até a porta do banheiro.

Ao sair, ainda dando de cara com a aeromoça, seguiu desconcertado e enfeitiçado. Ela fez tudo aquilo que em terra Luana não fizera. Dera-lhe um conforto de delicadeza feminina.

Horas depois, o avião chegou ao aeroporto de Orly, em Paris, e os dois começavam a viver uma pequena o que prometia ser a primeira lua de mel do casal. À noite, foram ver a Torre Eiffel iluminada e foi então que Flávio olhou para Luana, que esperava dele o beijo redentor, e disse:

- Luana, não quero reatar o namoro, estou apaixonado por outra.

Aquilo dito assim, na lata, depois de todo aquele enredo, esforço, deixou a moça paralisada, enquanto luzes piscavam na imensa da torre. Ela, parada, mal sabia que o coração de Flávio havia se encantado pela aeromoça.