quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Haneke filma o amor em estado de dor e faz reality show puro



Michael Haneke é o diretor do incômodo. O primeiro filme que vi dele, "Violência gratuita", me fez sentir um permanente estado de mal-estar e apreensão, do início ao fim. Foi difícil conciliar o sono naquela noite. O fetiche dos protagonistas pela tortura, a perda da segurança, os surtos violentos, é tudo muito angustiante, de deixar os olhos endurecidos. Em 'Cachê' o subproduto é idêntico. A câmera estanque na porta a mostrar movimentos suspeitos na rua, a cegueira diante da própria culpa. "Código desconhecido", "A professora de piano", "A fita branca"... Suas histórias, seus planos de filmagem são um convite ao desnudamento da nossa impotência. Ele expõe a miséria humana, a essencial, não material, com acentuação.

Isso volta a acontecer em "Amor", filme que recebeu cinco indicações ao Oscar e destacou-se no último festival de Cannes. Um casal de artistas octogenários têm a sua paz matrimonial, a sua felicidade deseternizada com o declínio da saúde da mulher, vivida majestosamente por Emmanuele Riva - que fez lá no passado o clássico Hiroshima, meu amor. A partir da doença, a instabilidade emocional, o atordoamento, tomam conta. E o filme é tomado pela narrativa dessa decrepitude. A decrepitude da existência, que chega sem aviso e escreve no outdoor o pensamento budista: "Vida é sofrimento".

A questão é que o filme não recorre a truques emocionalistas, não propõe um compadecimento da situação por meio de recursos incentivantes, tal qual música, frases de efeito. Ao ser cru, ao sufocar o espectador no apartamento do casal, Haneke dá o aviso tácito: é isto que acontece. É como se fosse de fato um documentário, um Big Brother do padecer de marido e mulher. É como se o cineasta dissesse a nós todos: "Vocês gostam de reality show? Que tal um sobre a nossa pobre e real condição?". É um trança pé que ele nos dá, isso sim é a vida real, por mais que nos recusemos a aceitá-la.


Se o velho músico, interpretado também com sofisticação por Jean-Louis Trintignant, fica diversas vezes atônito com a nova realidade, mostra uma paciência melancólica no cuidar do seu amor (e daí que o título simples e direto é categórico e sintético do que o filme propõe, pois fala-se de amor em múltiplos sentidos), a esposa vai definhando com a doença em sua inaceitação. Se antes ela tocava Schubert no piano, agora o derrame vai paralisando seus braços e assim matando suas expressões. O monólogo do marido diante da esposa emudecida, com o olhar vago, na primeira cena em que a doença se insinua, dá a dimensão da tragédia abrupta. As insistentes perguntas de um desamparado senhor: "Qu'est-ce que se passe?" (O que é que se passa?) tamborilam. Elas transitam no cartaz do filme, quando o semblante de Anne está estanque.

Ao não emocionalizar a trama, Haneke nos coloca frente a frente com a vida crua. Esse é seu cinema. Olhamos para ele como se olhássemos para um espelho do qual normalmente queremos fugir. O espelho que reflete nossas fragilidades, a fragilidade da vida. Algo que foge do nosso controle, como o mal físico que chega silencioso e insidioso, interrompendo nossa presumida felicidade. Anne, a mulher, dividia cotidianamente prazeres intelectuais com o esposo George, algo que a doença ceifa de suas vidas. As idas a concertos (na primeira cena, como se para dar uma pilula de como era a vida cultural deles, se dá numa sala de concerto com a câmera fixada na plateia) são abolidas. A alegria do compartilhamento vai minguando e surge então a doação como o novo condutor amoroso. Se por décadas o casal desfrutou da companhia um do outro por meio da cultural, agora Anne recebe a dedicação integral do marido à sua saúde, com a água, que ela infantilmente tenta recusar, dada na boca.

Haneke usa eloquentes silêncios como forma de deixar a audiência aflita. No meio da noite, o rosto de George pensativo, paralisado pela nova realidade, é filmado longamente. No meio de outra noite é a vez de o rosto de Anne ser a paisagem, com o pavor da morte à espreita. A tentativa de George de capturar uma pomba que entrou na casa, centro do filme, é um momento de massacre da alma.

É possível ver o filme como um mal em si. A vida é difícil, mas para quê enxergar isso tão claramente. Não seria melhor não pensar, como escapistas? Mas também é possível ver uma lufada de esperança. A esperança gerada pelo amor. Os conflitos são nossos parceiros desde a infância e conosco caminharão até o último suspiro. Ao mostrar isso, Haneke nos tira da zona de conforto e nos leva para os recônditos da nossa realidade.