sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Confidências de um (quase) paulistano




Tomo emprestado "Confidências de um Itabirano", do Drummond, para, no dia do aniversário de São Paulo, manifestar  meu amor pela cidade.

Confidências de um (quase) paulistano

"Por alguns anos venho vivendo em São Paulo,
mas não nasci em São Paulo
Por isso, aprendi a ser forte, orgulhoso, de concreto
Noventa por cento de cultura nas calçadas
Oitenta por cento de imigração na alma
E esse alheamento de tudo que na vida bucolismo e mansidão

A vontade de aprender, que me tumultua as ideias
vem de São Paulo, de suas noites luzidias, com jazz na Paulista e com gritos no Ipiranga

E o hábito de correr, que tanto me emerge
é agridoce herança paulistana

De São Paulo trouxe conquistas diversas que ora te exponho
este condomínio caro, futura deseconomia dos meus bolsos
estas meninas do Ibirapuera, e suas bicicletas esguias
estes cinemas de ruas, sobreviventes do capital desvairado
este orgulho, esta cabeça tresloucada

Tenho amigos, luas e fumaças
Hoje sou um santista paulistano
São Paulo é mais que uma fotografia na parede
E como rói"

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Django, a nova investida vingativa de Tarantino



Quentin Tarantino gosta de filmes violentos. Disse isso em várias entrevistas. E onde há vingança, há, no mais das vezes, algum tipo de violência, mesmo que psicológica. No caso do diretor, ela passa naturalmente pela violência física, descomunalmente exagerada. E assim, no coito entre violência e vingança, ele segue fazendo seu cinema de assinatura gritante. Com o uso meticuloso da música, a câmera lenta, as poses de heroismo, segue cativando os fãs, como eu. Em Django Livre a fórmula segue viva, pulsante. E parece dar sequência a Bastardos Inglórios na linha redentora dos maltratados históricos. No caso anterior eram os judeus que viviam a catarse de ver nazistas sendo escalpelados e satirizados. Agora, são os negros americanos que seviciam brancos em uma forma de "redenção" pela escravidão sulista praticada no século XIX.

Curioso é sair do cinema com a sensação de densidade em um filme tão cômico. Porque, meus amigos, a violência é tão exagerada que gera risadas. Tiro que faz uma moça voar de costas, sangue jorrando - recurso mais utilizado nos dois volumes de Kill Bill -, disparos em sequência, e plateia rindo alto. Claro, há cenas de violência mais crua, á moda daquela do MR. Blonde (Michael Madsen) torturando o policial e arrancando-lhe a orelha direita em Cães de aluguel. Cachorros devorando um escravo em Django dão aflição, assim como o personagem de Jame Fox pendurado num pau de arara prestes a perder os testiculos. Mas as cenas de tiroteio, por exemplo, são um extermínio gozadíssimo. Dizem que a intenção era de prestar uma homenagem ao western spaghetti de Sergio Leone, de quem Tarantino sempre se disse fã. Mas o ritmo não casa com o que o italiano fazia, com aqueles faroeste de personagens caracterizados de pontaria precisa, cruel. Mas as caracterizações de Clint Eastwood (especialmente em Três homens em conflito) e Charles Bronson (Era uma vez no Oeste) não guardam constatção. Há cenas que minetizam isso, mas a velocidade é outra. Os pistoleiros não tem o mesmo olhar presunçoso. Isso não é mérito nem demérito, é constatação. A música de Ennio Moriconni sustenta pouco o filme, já que divide o espaço com rapp e outras firulas.

Tarantino brilha nos detalhes, em que, como diz o provérbio, está Deus. Mas no caso dos seus filmes nos detalhes é puramente isso, detalhe, simples e hipnotizador. E o genial Cristoph Waltz tem se mostrado o ator certo para exercer esse detalhismo. Se em Bastardos Inglórios ele se expressa em cenas como a que oferece creme para a judia francesa colocar no strüdel e o silêncio paira enquanto joga as colheradas, em tensão opressiva, em Django há momentos como em que o mesmo ator, agora investido de uma mescla de  vilão e herói, vai servir cerveja e "raspa" a boca do copo duas vezes, em cenas que também são acompanhadas de mutismo. Lembram-se daquele pedaço de madeira que batuca na cena final de Kill Bill volume 1? É mais um exemplo dessa artimanha que naturalmente enfeitiça a audiência.

Na teia de vinganças, que dá a quem assiste uma sensação de redenção (desde que o espectador não seja um neonazista ou defensor da escravidão, evidente), também há o recurso da sátira. Do destroçamento pelo ridículo. Isso se manifesta quando uma turba de brancos escravocratas monta em cavalos com sacos brancos na cabeça, à moda Ku Klux Klan (movimento racista do século XX), e protagoniza uma dantesca discussão sobre o incômodo dos buracos para a vista. O bisonho, o mínimo, é o mesmo que acontece em Cães de aluguel, primeiro filme de sucesso de Tarantino, em que os ladrões discutem as reais intenções de Madonna na música "Like a virgin".

A vingança praticada com sadismo e filmada com esmera a receita-chave do ótimo cinema de Tarantino. 


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Dúvida desfeita ao amanhecer



Chovia muito forte, aos cântaros como dizia sua avó, e ela olhava hipnotizada os pingos que escorriam pela janela. A noite tinha sido frenética, repleta de novidades, a começar pelo homem ali, estirado na cama, que dormia pesado como chumbo. Mas para ela as noites de amor eram assim, sempre prenhes mesmo de novidades, pois vivia de sexo casual, não conseguia emplacar uma mísera relação. Sofria com o que um amigo apelidou de "síndrome da não-repetição". Não conseguiu pegar no sono e se mandou pra sala.

Tomou a liberdade de vasculhar a geladeira, raptou uma maçã e sentou com as pernas cruzadas no sofá. Ali espiava o gotejar na sacada, com o pano de fundo da noite paulistana repleta de luzes nos edifícios.
A cabeça doia um pouco, fruto da mistura de vodkas em série com o baile de pernas e braços voluptosos do exercício vital que praticou com aquele rapaz. Não sabia o nome dele, até desconfiava que tinha lhe falado durante a dança, já no cume da embriaguez mútua. E, depois, com os lençóis remexidos, a memória lhe trazia alguma coisa suspirada. Mas o esforço era vão.

Viu que no hack dormitavam alguns retratos dele mais jovem, com uns, supunha, 22 para 23 anos. Agora devia ter uns 15 a mais, já flertando com os 40. No retrato ostentava o rosto liso, barbeado, o opostos daquele que dormia com uma barba cerrada, já um pouco judiado e, para ela, mais másculo. Voltou a olhar os pingos e refletir sobre a vida, a indecisão, a surpresa. Era um baile de coisas. Ouviu um pequeno resmungo do homem, um "aqui não, aqui não".

Foi até lá, viu que o silêncio regressara e voltou para a sala. Provavelmente estava sonhando. Pensou em ligar a TV, dispersar-se do chacoalho ritmado da chuva, mas achou melhor não. Podia acordar o amante de ocasião e, sóbrio, vai que ele se indignasse e tivesse uma reação violeta. No fundo queria que ele acordasse e lhe contasse coisas da sua vida, abrisse alguns segredos. Não queria ir embora assim, trafegando num túnel repleto de incógnitas e aquela dúvida que vinha se eternizando relação após relação:

- Será que vai me ligar? Ao menos para dizer que gostou da noite e quer repetir? Ou me convidar para um jantar romântico, talvez..

Nas últimas três vezes deixou um bilhetinho ao lado da cama e nenhum dos desnaturados teve a honradez de dar um "alô". Tinha prometido que não iria mais repetir aquele roteiro, mas já havia fracassado no trecho principal. Culpava a bebida, a vulnerabilidade emocional, as duas juntas, nenhuma delas.. Era um poço sem fundo de perturbações. Lembrou da amiga que falava no hedonismo, no prazer desassociado das necessidades emocionais. Mas depois a sensação era sempre a mesma, não conseguia separar tão friamente assim:

- Não vai me ligar e eu vou me danar.Minha autoestima irá para o buraco e tudo recomeçará.

Voltou a mirar as lágrimas pluviais e pensar antes de tomar o rumo de casa. Será que não valia esperar amanhecer, comprar pães, suco, café e recepcioná-lo como se o apartamento fosse seu. Inverteria o sentido, o surpreenderia e assim teria chances de transformar aquilo num primeiro encontro bem-sucedido. Ou então simplesmente esperar, deitar ao seu lado, tentar conciliar o sono e ver o que aconteceria ao amanhecer. Ainda sentia um pouco de tontura alcoolica e guardava o cheiro dele no corpo. No fundo queria repetir a transar, queria sentir aquela pegada novamente, o suor, as expressões, stava com o tesão escorrendo. Resolveu tomar um banho e acalmar os instintos.

Depois da ducha, tomou a toalha que estava pendurada na porta e, enrolada nela, deitou calmamente ao lado do estático homem. Parecia morto, um faraó estirado na catacumba, nem a respiração era percebida. Ameaçou tascar-lhe um beijo no ouvido, que a ela se oferecia sem resistências. Encostou um pouco e lembrou que nem o nome sabia, ou melhor, esquecera. Veio-lhe à cabeça alguns palavrões que ele soltara durante os gemidos alucinados dela. A dominação, ela gostava. Mas queria amor na sequência. Era isso que vinha esperando há tempos. Seu anseio maior era esse. Diante daquela imobilidade e de sua covardia para sequer triscar os lábios nele, levantou-se novamente da cama. Passeou os olhos pela estante do quarto e viu alguns títulos que sugeriam os gostos do rapaz. Viu Bukowski, Kerouak, João Ubaldo e Hemignway.

Aquelas atitudes sexuais rimavam de certa forma com o que sabia daqueles escritores. Ao menos do trio estrangeiro, mais seco, ríspido, não dados a firulas. Tentava assim desvendar um pouco do parceiro de poucas horas. Seria ele um bebedor rotineiro? Um boemio de carteirinha que fizera dela mais uma presa. Nas fotos que vira na sala não apareciam outras pessoas. Nas que havia companhia, não era humana, eram cães. E muitos, vários. Ele segurando várias coleiras. Recordou-se daqueles passeadores de perros que viu em Buenos Aires quando por lá esteve. Seria sua profissão? No apartamento não havia animais, ou melhor, ouviu um piar constante e notou uma gaiola no fundo da cozinha. Então era assim: ele e o canário? Um sujeito de meia idade e um pássaro amarelo!

Havia alguns CDs no móvel da sala. A ela chamou a atenção especialmente uma coletânea da Jovem Guarda, com Ternurinhas e Tremendões.

- Mas será possível? - pensou.

Mas se questionou. Será que gostava tanto de Erasmo, Roberto e cia, em gravações dos anos 60, ou se tratava de algum álbum esquecido do pai, da mãe, outro parente ou mesmo de um amigo. Afinal, sempre temos algum objeto dos outros infiltrados entre os nossos. É comum. Até porque aquele era um disco ensanduichado entre Oasis, Led Zepelins e afins. Não fazia muito sentido. Não tinha mais nenhuma companhia que se alinhasse. A investigação por gostos a deixara confusa. Tentou imaginar aquele homem de olhos redondos, negros e firmes, e voz rouca alucinada, que nunca dizia o "s" dos plurais (pelo menos naquele noite, berrando "eu sou o bom, sou o bom, sou o bom!". Não, não casava. Mas como tentava afugentar rótulos da sua cabeça, decidiu que não se fixaria mais nesse tipo de miudeza.

As horas passavam, ela observava e nada de ele esboçar reação. O sol despontou, a chuva cessou e ela resolveu descer para tomar um ar e, quem sabe, tomar coragem para comprar os insumos do café da manhã que projetou. Não ía mesmo embora. Se tivesse que tomar um pé na bunda que fosse olho no olho, mesmo que por indiretas, nada de silêncio, submisso, falta de rastro. Admita tudo, menos as mesmas cenas já tão testadas e desaprovadas.

Ao passar pelo portão do prédio avisou ao porteiro que voltaria.

- Estou no 44, só vou comprar umas coisinhas e já volto - disse, acompanhada por um simpático aceno positivo.

Na padaria, olhou, olhou, olhou e desistiu. Não comprou nada. Poderia pagar um mico com sequelas muito forte. Resolveu retornar ao prédio. Na portaria, ouviu:

- A Valquiria já subiu.

Fez cara de espanto, mas segurou a onda e fingiu que conhecia.

- Ah sim, claro!

Mas sua cabeça subitamente entrou em parafuso. Em frente ao elevador ficou imaginando quem seria a tal de Valquiria e como reagiria à sua presença. Havia deixado na sala a sua bolsa e uma tiara azul cingida com pequenas madrepérolas. Havia descido apenas com a carteira, que nem usara. Se antes a angústia era para saber qual reação o rapaz teria ao vê-la ainda lá, agora ela ganhava contornos dramáticos com a possibilidade de que a moça (podia ser uma senhora também, não sabia) fosse a mulher dele. Atiraria sua bolsa pela janela? Atiraria nela quando adentrasse o apartamento? O que faria? Seus documentos estavam todos na bolsa, os originais, não tinha como arredar pé. Uma cilada tremenda!

Resolveu subir mas não entrar. Repousou o ouvido direito na porta e, raios, não ouviu nada. Um silêncio profundo apenas. Testou a maçaneta e a porta estava aberta. Empurrou-a devagar e viu que a bolsa seguia sobre a poltrona, no mesmíssimo lugar que deixara, e não havia nada remexido. Foi então que ouviu um pequeno grunhido rouco de prazer.

- Meu Deus, eles estão transando. O cara é uma máquina! E eu uma palhaça.

Pegou a bolsa e foi saindo de mansinho. Mas recuou. A curiosidade, aliada às traumáticas experiências anteriores, teve peso maior. Foi chegando perto do quarto, viu que a porta estava encostada, empurrou lentamente e notou que a moça fazia calmamente uma massagem no homem, que permanecia incrivelmente na mesma posição que estava quando ela desceu para buscar a comida do café que não aconteceria. Observou que ela  ouvia música, pois carregada fones nos ouvidos. E apertava músculo por músculo dele com bastante força, brutalmente. Ele estava nu em pelo e ainda guardava  o forte odor da transa de horas atrás. De repente, a moça, que tinha mãos repletas de veias grossas e potentes, estufadas, começou a tirar a roupa. Os dedos eram longos e carnudos, passando ao largo da feminilidade. O rapaz se remexeu um pouco lateralmente, mas permanecendo de bruços e, agora, com as pernas afastadas. E qual nao foi seu susto ao entrever o membro ereto da massagista, que na realidade era o massagista, e ficou ali, apoplética, enquanto ela, ou ele, que tinha seios notáveis de travesti penetrava bruscamente o rapaz. Só deu tempo de escutar um "Ou". Puxou a porta de volta, ajeitou a bolsa e pensou, ainda atônita:

- Cada um que me aparece.

Escreveu o bilhete com seu nome e telefone e deixou ao lado da televisão. Saiu do apartamento convicta de que é sempre bom esperar o dia amanhecer para que as coisas se revelem sem emudecer do telefone.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Tragédia na Torre Eiffel



Passou a semana inteira tentando acalmar a aflição. O medo de avião era tremendo, seu companheiro contumaz, a ponto de paralisar o trabalho e deixá-lo com a sensação de que caminhava linear para a sepultura nos dias que antecediam o embarque. À noite, em casa, usava ferramentas de pesquisa na internet em busca da impossível certeza de que um motor não pegaria fogo, um urubu distraido não invadiria uma turbina, o piloto não tiraria um cochilo na cabine ou um fanático religioso não sequestraria a aeronave e a jogaria de encontro a um alvo capitalista qualquer . Pensou em tomar soníferos ou um porre daqueles para ao menos anestesiar o pânico. Mas leu que poderia ter efeitos colaterais pesados nas alturas e abortou a ideia. Buscou entrevistas com pilotos experientes que nunca sofreram nenhum revés, testemunhos de quem foi perdendo com o tempo o pânico e estatísticas dessas várias que garantiam ser o avião o mais seguro dos meios de transporte perdendo apenas para o elevador. Mas até nesse dado encontrou motivos para inlfacionar sua paúra. Já havia ficado várias vezes preso com o ascensorista no prédio comercial em que trabalhava. Em uma das ocasiões a caixa de ferro e madeira deu trancos violentos. Se era mais seguro que os aviões, sua mente acovardada já disparava o sinal de advertência. Era um boicote mental a cada tentativa de aplacar a angústia.

A viagem era inadiável. Ou melhor, poderia, claro, cancelá-la, mas com um ônus emocional para ele irreparável. Pois se o fizesse perderia a namorada que tanto amava. Seria uma viagem à moda prova de amor. Após trocar beijos com uma amiga dela, em um episódio mal parado, a exigênciada amada para ter um perdão era travar um duelo com sua fobia em nome da salvação amorosa.

- Para provar que me ama, você irá fazer uma viagem de avião comigo. Só assim acredito no que você tem aí dentro. Não quero nem saber!

Palavras duras de fato. Coisas de mulher magoada. Ele logo lembrou da "malícia de toda mulher" sussurada por Noel Rosa no disco de vinil que seu pai preservava. Ela demonstrava ainda querer ficar com ele, mas precisaria de uma ação impactante, um gesto grandiloquente, nada de quixotices em moinhos de vento. Após dois anos de relacionamento, sabia que Flávio temia os aviões como ela as baratas e lagartixas. Como ele estava em desvantagem na situação e havia chorado copiosamente quando ela dera termo da relação, Luana recorreu à fobia do rapaz como forma de reabilitar as coisas. Foi inclemente, terminante. E não se sensibilizou quando ouviu dele, que fazia caras e bocas chorosas, em discussão na sala de sua casa:

- Você vai fazer isso comigo? Vai me colocar na fogueira dessa maneira. Você sabe a porra do medo que tenho desses troços voando. Não lembra como fico antes de viajar? Podemos fazer um cruzeiro romântico pelo litoral brasileiro, que tal? Com jantares à luz de velas, um velhinho tocando canções clássicas no acordeón especialmente para nós, vinho, comida far....

- Flávio, você é muito cara de pau - interrompeu ela - Não quero saber de viagem romântica coisa nenhuma. Quero que prove o amor. Passeiozinho assim é moleza fazer e não prova droga nenhuma. Para isso, tem que topar viajar de avião comigo. E não é viagenzinha vagabunda não, tipo ponte Rio-São Paulo ou coisas desse tipo, curtinho, indolor, que nem sente. Quero ir para a Europa, viajona, mais de dez horas no ar comigo. Eu, você e esse medinho teu aí. Se fizer isso, aí sim eu perdoo essas sacanagem que você fez comigo e a gente continua junto. Ou então ficará sem mim e com esse seu pânico tolo aí - desdenhou.

Flávio emudeceu, mas por dentro suas vísceras adquiriram feições enraivecidas, estavam como carne viva entubada. O dilema era enorme porque Luana era a razão de seu viver, tinha convicção disso Nutria ali uma aversão por si mesmo, pelo beijo furtivo que dera na amiga em um momento de embriaguez. Tudo se passara num bar da São João, quando Luana foi ao banheiro e Beatriz, a amiga, aproximou-se com os lábios e, na versão dele, tascou um beijo. E nem imaginava que ela ainda contaria para a namorada com versão deturpada e diria que ele é que lhe dera um "beijo forçado". Tudo se misturava na sua cabeça, que começava a pesar, a latejar e arrastar-se em fúria. Começava a não ter dúvidas de que precisaria encarar aquela viagem probatória. Viver sem Luana traria sofrimento demais.  Como era muito projetivo, já imaginava não suportar vê-la com outros homens desfilando pela vizinhança.

Antes de iniciar sua rotina de respostas arrefecedoras do medo, porém, ainda bolara um outro plano para dissuadir a amada. Uma tentativa final, um último apelo. Ignorando não ser ela muito feita a métodos romanescos à moda antiga, contratou dois seresteiros para se plantarem na porta de sua casa, no bairro italiano da Mooca, e cantar meia dúzia de cantigas de dor de cotovelo e romanescas . Ainda na vigília do sono, ao ouvir o fraseado de Roberto Carlos quase teve um colapso nervoso. "Nosso amor é assim, pra você e pra mim, como manda a receita! Nossas curvas se acham, as formas se encaixam, na medida perfeita". Conseguiu distinguir a voz rouca e desafinada de Flavio e, de camisola, como nas cenas tradicionais, abriu a janela e achou não sabia se era delírio ou verdade. Ao deparar com os dois senhores de fraque e viola ladeados por Flávio, com cara de cachorrinho submisso, ficou vermelha. Não encarnou Rapunzel nem Julieta, mas se assemelhou à "Moça da cidade" que seu pai também ouviu, "que quer dormir impunemente". Fez um meneio negativo com a cabeça, bateu as janelas com força e fez cessar a cantoria que acordou as redondezas.Flávio ficou lá, com cara de parvo, olhando para o vazio prenhe de aviões.
No dia seguinte, logo cedo recebeu uma ligação de Luana, que logo trombeteou:

- Flávio, se você recorrer a mais algum método ridículo de reconquista nem mais viagem de avião vai adiantar para reatar as coisas. Tô ficando de saco cheio! Ou você compra logo essas passagens ou nunca mais vai me ver nem pintada de marrom.

E, pá, desligou o telefone.

Era melhor mesmo não insistir. Com esses gestos "fáceis" de reconquista estava afundando cada vez mais. Sua fúria era tamanha que queria fazer um bonequinho de Beatriz e picá-la sofregamente. De nada adiantaria, claro, mas seria uma forma de destilar sua ira na amiga desagregadora. Teria que encarar aquele medo todo, enfrentar nuvens, turbulências, barulhos tétricos e passageiros falantes que insistem em desdenhar do pavor alheio. Comprou as passagens para o fim de semana, reservou hotel no centro de Paris, assim como passeios no museus do Louvre e de Orsay, uma noite no Moulin Rouge e outras maravilhas.

Sua mente pessimista, porém, achava que não chegariam ao destino. E se chegasse, o avião cairia no Senna ou sobre o Monmartre. Havia viajado de avião algumas vezes, todas elas a trabalho. O mais longe que tinha ido era a Buenos Aires, quando defrontou-se com uma turbulência tão extraordinária que comissários de bordo não conseguiram servir os lanches e tiveram que sentar-se, uma garrafa de coca-cola foi parar no assoalho e a uma senhora na poltrona à sua frente teve incontinência urinária. Naquele dia rezou pais nossos e ave marias aos quilos, como jamais havia feito, nem mesmo nas idas ao confessionário durante o Catecismo e nas sessões de novena que sua tia promovia em casa. O abandono à crença perdia para o desespero de causa. No limite existencial, passava de ateu a cristão dos mais devotos.

Na véspera da viagem, um sábado, nao conseguia ficar parado. Não podia ver Luana, que, na sua malignidade de mulher ferida, havia estipulado a condição inflexível de que se encontrariam apenas no aeroporto e, somente ao sentar no avião, iniciariam o rreflorescer da relação. Moça dura de fato. Flávio havia alugado uma série sobre desastres aéreos e sobre os aeroportos mais perigosos do mundo. A intenção era, num passe de mágica, a poucas horas de subir ao céus, convencer-se de que para estar num acidente aéreo teria que ser azarado além da conta.

Ou ainda, mostrando mais uma vez misticismo de ocasião, se acontecesse é porque assim teria que ser. Não havia ninguém próximo que perdera a vida em episódio assim. Sabia de um pai de uma amiga de um amigo, era o único, isolado caso que tomara conhecimento. O resto, distante, sabia somente pelo noticiário como todo mundo, nada mais. Repentinamente lhe veio à mente uma dúvida: "Por que as asas não rompem no ar? Parece tão fácil com aquela velocidade toda... Ou então, por que não há choques frequentes de aeronaves, já que os voos comerciais são milhares por aí? E ainda: por que pessoas andando para lá e para cá no corredor e comissários de bordo passando com aqueles carrinhos ultrapesados não faziam o avião despencar?" Sacudiu a cabeça, bateu no rosto e tentou parar com aquelas perguntas frenéticas e amadoras sobre o assunto. Estava surtando. Parecia um desvariado. Então, por impulso, ligou para Luana:

- Amor, por que as asas dos aviões não rompem no ar?

- Flávio, e eu sei lá. Tenho cara de engenheira de aviação, cacete?

- E por que aviões não batem no ar como carros nas estradas e..

- Flávio, estou fazendo um bolo com a minha mãe e não posso falar agora. Eu te encontro amanhã no aeroporto. Não esqueça de chegar antes para fazermos check-in e tudo mais. Te amo!

E pá, desligou..

Teve um súbito enternecimento

- Te amo? - pensou.

Aquele foi o único instante nos últimos dias em que sua alma adquiria frescor, sentia então uma inédita calma interna após horas a fio de ebulição.

- Então quer dizer que ela ainda me ama?

Com cara de felicidade desavisada esqueceu por alguns minutos que aquele amor se esfarelaria se ele não enfrentasse a bendita viagem do dia seguinte. Ouvir aquelas palavras depois de algum tempo era como um bálsamo. E então decidiu que até o momento da decolagem esqueceria os pensamentos pavorosos e se fixaria naquele "te amo". Como se fosse possível e ele não fosse escravo do medo. Resolveu rever as fotos que fizeram quiando completaram um ano de namoro. A comemoração veio junto com os 30 anos de ambos, nascidos no mesmo ano e separados apenas por cinco dias. Foi no Parque do Ibirapuera, onde passaram a tarde andando de bicicleta e amaram em paz. 

Quando a noite caiu, foi fazer as malas e o pensamento mórbido regressou.

- Estas malas e roupas virarão pó, assim como eu, carbonizado.

Sentia ódio de si mesmo por ideias tão acintosamente negativas. Estava sozinho em casa, embora morasse com os pais, que estavam no sítio da família, no interior paulista. A mãe o telefonou para dar 'boa viagem' e dizer aquelas coisas tipicamente maternas, tais como: 'Leva bastante roupa de frio que essa época é dura na Europa"... me liga assim que chegar lá... "Não esquece os documentos", e por aí vai... 

Foi comprar pão para o lanche e decidiu que dormiria cedo. Comprou uma cartela inteira de ansiolíticos e tomou numa tragada só, no limite da intoxicação. Queria ter uma noite de sossego e ter que enfrentar sua inquisição apenas na hora em que ela realmente se desenrolaria.

O dia chegou. O toque do despertador era o toque do suplício, um veneno para os ouvidos. Não tinha saída, ía para a sua guilhotina pessoal. Mas viver sem Luana era uma negação do viver. Outro devaneio obscuro logo o assaltou:

- Ao menos morrerei nos braços do meu amor!

No aeroporto, ao mostrar para a agente da companhia aérea seu passaporte, com as mãos trêmulas e suadas, via as pessoas duplicadas à frente. O coração trotava acelerado, sentia pulsação por pulsação, poderia contá-las. Luana, sorridente, não fazia um único carinho consolador e entrou no saguão intimorata, como a mais destemida das mulheres. Soava até como sadismo aquilo tudo. A imagem servia apenas para deixar Flávio ainda mais tenso e incomodado.

- Como ela pode? Como ela pode? - pensava.

Ao pisar na aeronave, gigante, com poltronas em três fileiras, sentia mais vertigem ainda. Não havia dúvidas, em sua cabeça derrotista, que estava caminhando para um cadafalso opcional. Escolheu ter o pescoço tolhido. Para resgatar uma relação, entregava a vida como se fosse um mártir amoroso.

Cintos atados, pernas tamborilando... Enquanto Luana lia a revista da companhia aérea como se estivesse num banco de praça e não perto de perfurar nuvens, Flávio engolia a seco e olhava pela janela. O avião taxeava pela pista e a asa sambava para cima e para baixo. Lembrou de tudo que leu, viu, ouviu e nada o consolava, o encorajava. De repente, o comandante soltou:

- Atenção, passageiro, decolagem autorizada.

Cerrou os olhos com força desproporcional e começou a tentar pensar em outras coisas. Rapidamente passaram por ele as tarefas acumuladas no trabalho, os filmes que queria ver, os livros que queria ler. Mas no meio de tudo isso sentiu uma mão lisa escorrendo sobre a dele o apertando. Era a mãe de Luana, que então o olhou nos olhos:

- Você é meu amor, sabia?

Flávio deu um sorriso amarelo, com tremeliques nas bordas do lábio.

O voo transcorreu sem sobressaltos, embora de tempos em tempos Flávio sentisse ânsia e tivesse que ir ao banheiro. Em uma dessas idas, uma aeromoça, notando o mal-estar, foi ajudá-lo.

- O senhor precisa de alguma coisa?

Ao ver aquela moça esguia, de cabelos curtos aloirados, boca macia e bem curvada, e olhos sutilmente castanhos, teve alguns segundos de leveza.

- Tô um pouco mal porque morro de medo de viajar de avião.

- Calma, calma, é tranquilo. É bem seguro aqui - disse ela enquando fez um discreta massagem em seus ombros e o conduziu até a porta do banheiro.

Ao sair, ainda dando de cara com a aeromoça, seguiu desconcertado e enfeitiçado. Ela fez tudo aquilo que em terra Luana não fizera. Dera-lhe um conforto de delicadeza feminina.

Horas depois, o avião chegou ao aeroporto de Orly, em Paris, e os dois começavam a viver uma pequena o que prometia ser a primeira lua de mel do casal. À noite, foram ver a Torre Eiffel iluminada e foi então que Flávio olhou para Luana, que esperava dele o beijo redentor, e disse:

- Luana, não quero reatar o namoro, estou apaixonado por outra.

Aquilo dito assim, na lata, depois de todo aquele enredo, esforço, deixou a moça paralisada, enquanto luzes piscavam na imensa da torre. Ela, parada, mal sabia que o coração de Flávio havia se encantado pela aeromoça.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Amantes fellinianos - Um beijo roubado

Os dois de repente só se olhavam. Havia uma cruzada mútua e fratricida, com uma íris cristã querendo invadir a outra. Nada, no fundo não era cristandade, afora a doçura, pois a pronúncia era da libido. Havia, no fundo, chama nas pupilas, na mútua contemplação que se insinuava eterna. Eram os olhos que se ardiam, com os cílios quase incendiados. Nas piscadas nem reparavam, eram intervalos ínfimos, sem importâncoia. Olhos que ensaiavam, que preparavam para que as noites fossem daquela mulher, muito buarqueana, "como oração na catedral", sem que cuidassem "do mundo um minuto sequer".


A batalha, romanticamente oftalmológica, começara em instantes. Estavam tomando vinho tinto suave e falando sobre cinema, na doce vida de Fellini. E eis que a antológica cena de Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg se repetia em intimidade só deles. Ali viviam seu próprio mergulho na Fontana di Trevi. Ah, La dolce vita nas retinas, retintas de suor. Olhos também suam quando tragados pela paixão.
Foram minutos de sedução nos olhares. Parecem segundos, já que o tremor da alma engole o tempo. Os goles de vinho espumavam nas entranhas ansiosas de calor.

Era "sexo, mentiras e videotape" sem videotape. A gravação era feita a olho nu, cara a cara, um em cada canto do sofá. As taças corriam riscos em mãos encharcadas de vontades. Alguém daria o bote se as esclerótidas não diminuissem a pressão. E voltavam na cabeça dele os versos de Chico: "Amo tanto e de tanto amar, acho que ela é bonita". Um amor descoberto ali, na calada da noite, quando tudo parecia só cinema. Seria ela Giuleta Masina? Seria ele o seu Fellini reproduzido?

Não houve tempo para música, embora ele tivesse preparado ao lado do velho aparelho de DVD uma trilha sonora de filmes de Woody Allen. Tocaria o sax de "Meia noite em Paris" para seduzi-la. Não precisou, os olhos se anteciparam. Bastaram as palavras da vida doce, que logo vinham se transformando em murmúrio, para o mundo racional ruir. Os corações estavam acelerados, talvez ao dispor dos ouvidos da vizinhança.
Foram minutos e minutos assim, de um silêncio em que olhos se devoravam. Nenhuma imagem era mais acariciante que as tramas oculares alheias. Ela via duas luas meladas, quase se desmanchando. Ele não cria no que assistia: o espetáculo de gêmeas dançarinas de anil com movimentos sutis. em um lago dos cisnes cativo, só dele.

As bocas começavam a acumular sede. Sede da saliva próxima. Foi quando os olhares largaram a fixação e iniciaram o revezar meticuloso entre olhos e lábios. Estava desenhada a trama. Após o ponteiro do relógio fatigar-se, fora dado o pontapé inicial. As bocas se uniram, as mãos agiram e a paixão eclodiu. Tudo muito assim, Felliniano, buarqueano, com  doces vidas e catedrais explosivas. Era mais uma manifestação súbita da paixão. Eram, enfim, um beijo roubado!

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Leone e Moriconne, dois italianos que transformaram o oeste americano com filme e música

                                           Foto: os dois gênios conversando, Sergio Leone e Ennio Morricone

Não faz tanto tempo assim, resolvi mergulhar no universo dos faroestes (os westerns, pra ser mais pomposo). Mas não no bang-bang que quando moleque observava na Sessão da Tarde com certo enfado. Eu me refiro ao gênero clássico, dos diretores renomados, que o trataram com esmero artístico. Cheguei nele poucos anos atrás ao ouvir de um amigo a, pra mim até então inédita, expressão "western spaghetti". Ainda dessa mesma pessoa, na mesmíssima conversa, escutei que havia um tal de "Três homens em conflito", de um tal italiano chamado Sergio Leone, pai, filho e espírito do tal Western Spaghetti, com uma tal cena final incrível... Pois passei a procurar o filme em locadoras até achá-lo e, assim que vi fiquei fascinado pela obra, que tinha um chantilli, um ponto G, saborosíssimo: a música de Ennio Morricone. Hoje, tempos depois, compartilho da percepção do supracitado amigo quanto ao duelo que encerra a película. Os três rivais (que figuram adjetivadamente no título original, em italiano: Il buono, il brutto, il cattivo) se enfrentam num terreno aberto de um cemitério com os olhos rutilantes, marca registrada dos atiradores implacáveis dos westerns. O bom, o feio e o mau, interpretados de forma exuberante por Clint Eastwood, Eli Wallache e Lee Van Cleef, respectivamente, sustentam minutos a fio de pura tensão. E a música, cirurgica, rege a situação. Ali estava o ápice de um enredo denso, passado durante a Guerra Civil Americana, e com outra série de momentos inesquecíveis e falas de efeito. Há, já no fim, uma deliciosa, quando o personagem de Clint diz para o de Wallace, com a arma em punho mandando-o cavar para achar o dinheiro perseguido em uma cova: “Existem dois tipos de homens no mundo: os que têm uma arma e os que cavam. Você cava!”.

                                              Duelo final de Três homens em conflito



Bom, mas quero mesmo é tratar dessa dobradinha Leone - Morricone, que, por fruto do acaso, até rima de tão perfeita e sedutora. É que finalmente assisti à "Era uma vez no Oeste", filme que comprei há um tempão. E mais uma vez terminei atônito, arrematado, com os efeitos que a música injeta na imagem. A mais marcante, a celebrada, é a que acompanha a personagem da estonteante Claudia Cardinale. Prostituta em Nova Orleans, ela se manda para encontrar-se com um viúvo com quem acabara de se casar. Quando chega, encontra o marido e os filhos deste todos estirados, assassinados por interesses econômicos. As terras em que ele habitava seriam passagem de uma linha ferroviária (aqui temos lascas da construção dos Estados Unidos). Essa cena, antecedida pela chegada da personagem de Cardinale,  Jill McBain, são acarinhadas pela música-tema, que é melancólica, bate fundo. Primeiro quando ela está descendo do trem vem como um prelúdio da beleza da mulher forte. Mas no momento em que ela observa os corpos, especialmente do menino menor, a canção transmite dor, finitude. Coisas de quem faz da música um dom. Li por aí, não sei exatamente onde, que durante as gravações era comum ver gente chorando na equipe de filmagem tamanha a emoção das imagens entremeadas pela melodia.

                                 Claudia Cardinale é a "musa" da música-tema de Era uma vez no Oeste.



É curioso pensar que dois italianos tenham conseguido dar toques ainda mais míticos pro oeste americano (antes, essa primazia era de Henry Ford, que tem westerns brilhantes. O meu preferido é Rastros de ódio, com John Wayne). E as músicas, em geral - pode soar como estultice de um leigo como eu dizer isso - tem pinceladas da canção folclórica italiana, suavemente, quase imperceptíveis, como tarantelas que não se concluem. Em Era uma vez na América (que faz parte da trilogia iniciada por Era uma vez no Oeste) e por Um punhado de Dólares (integrante da trilogia que culmina com Três homens em conflito), isso também acontece. Ennio, aliás, é o autor da prodigiosa trilha musical que embala o lírico "Cinema Paradiso", clássico de Giuseppe Tornatore.

                                          Tema final de Cinema Paradiso, também de Ennio Moriconni



"Era uma vez no Oeste" também nos brinda com atuações de gala de Henry Fonda, Charles Bronson e Jason Robards. Primeira vez, diga-se, que vi Fonda como um carrasco - minhas duas outras experiências com ele, "Vinhas da ira" e "Doze homens e uma setença", são de personagens heróicos. Coincidentemente temos aqui, como em "Três homens em conflito", um trio que se confunde e mantém o suspense até os minutos derradeiros. A trama também tem a esfíngica presença da gaita do personagem de Bronson, a se desvelar somente nos estertores. Aliás, outra coisa que li um tempo atrás é que era do gosto de Leone que a tríade Eastwood, Wallache e Van Cleef abrisse "Era uma vez no Oeste", na cena de tiroteio em que são dizimados por Bronson. Porém, infelizmente ela não se concretizou. Seria um liame ótimo para tão rica obra. Fez-se, ainda assim, um início arrebatador de filme, com os primeiros créditos subindo lentamente enquanto temos um silêncio entrecortado por movimentos naturais, como os do zumbido de uma mosca no rosto de um pistoleiro ou da gota que cai no rosto de um caubói. São minutos deleitáveis pra quem aprecia uma filmagem meticulosa, que no mais essencial traduz os detalhes da vida.

Não é à toa que Quentin Tarantino reverencia Leone. Hoje, tendo visto boa parcela da filmografia dele (ainda preciso completar as trilogias) sou fã entusiasmado. E enxergo na simbiose itálica com o maestro Ennio Moriconni um laboratório em que trocas podem ter como subproduto o que de mais sublime a arte pode produzir.