segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Rômulo sim é que era romântico de verdade

Conto livremente inspirado na música Românticos, de Vander Lee

Nunca conheci um sujeito como Rômulo. Era um romântico desses que, desconfio, não existem mais. Não que inexistam românticos, mas no grau de insânia dele, febril mesmo, acho difícil. Devem ser raros, pouco visíveis neste mundo prenhe de cautela e auto-afirmação, sem doação. Talvez encontráveis em alguns recônditos da Pauliceia Desvairada. Ele se apaixonava facilmente e logo queria estar dentro da mulher amada, perscrutá-la em detalhes. Embriagava-se e declarava-se, alcoolizado, como um trovador. Escrevinhava poemas, ébrio, com os olhos inundados de lágrimas e alma fervilhando. Para ele, a moça da vez era o paraíso, idealizava, era sua musa eterna. Compunha até músicas, em um violão surrado, e a ela ofertada.

A última vez que o encontrei foi para um café na Augusta.  Nessa ocasião, me contou que a sua bola da vez amada era uma mexicana. Ele a conhecera numa festa na casa de amigos, estava fazendo um estágio de economia no Brasil. Disse que foi paixão "à primeira mirada". Seu relato, sempre açucarado, a pintava, nas suas sempre poéticas e caudalosas palavras, como uma "joia azteca de tez morena perfumadíssima". Ah, aquele Rômulo não tinha jeito! Daquele seu jeito desbragado me disse que logo ao vê-la, enquanto remexia um copo de conhaque com o dedo indicar, fez uma promessa de tornar-se devoto de Nossa Senhora de Guadalupe se ela o correspondesse. Incrível como nunca tinha medo de outra desilusão, mesmo aos 41 anos de idade e uma fila imensa de corações partidos. Olhou-a de frente, de soslaio, de passagem, por todos os ângulos, a noite inteira. No seio da madrugada, já um etílico calibrado, e depois de entrever escapar do rosto dela um sorriso denunciador, aproximou-se. Antes, talvez por ritual e um pouco de demagogia, virou dois pequenos copos de tequila.

Anita era seu nome, Anita Ríos, com aquele erre deslizante do espanhol. Assim respondeu à sua primeira pergunta, chacoalhando a longa pena que complementava o pingente dourado do ouvido esquerdo, com charme e letalidade. Uma morenice, me dizia ele, que lembrava uma cabocla que conhecera em um verão na Paraíba.muitos anos antes. Tinha aquela coisa latino-americana do sangue pulsante. Tava no olhar, de redondo negro com os cantos levemente puxados. Naquela noite não rolou nada, disse-me mas seu furor romântico, de louco desvairado, logo o impulsionou a, no dia seguinte, convencer uma turma de amigos a imitar mariachis no início da noite, no pé do prédio da Consolação em que estava hospedada. Anita, com expressão de susto, começou a ver aquilo e soltou gargalhadas, provavelmente pelo amadorismo e cara de pauísmo da situação. Engraçado que me contava essas coisas sem um pingo de vergonha, sem ruborizar-se


Rômulo me disse que há um mês saia com Anita quando chegou uma carta, com remetente de Puebla, no México. Era de um homem, fato que ele descobriu sem querer, como um típico acaso que costuma atravessar relações frenéticas de ocasião. Quando saía do banho após uma noite de transa caliente com sua nova amada viu que ela lia atentamente a correspondência e assustou-se quando entrou no quarto. Soluçava de tanto chorar. Seu irmão escrevera para dizer que o avô havia falecido. Iria antecipar seu retorno ao México para o enterro do querido abuelo. A reação imediata de Rômulo, um romântico inveterado, foi de pasmo. Não podia ser egoísta, um familiar querido havia partido e era justificável que Anita tomasse essa decisão. Mas nada é justificável para esses tipos que concentram na paixão por uma mulher seus instantes de valia, a única razão para existir naquele momento. E então cometeu o desatino, em um improvisado espanhol (desnecessário e cafona, já que ela falava português escorreito, mas bem ao estilo hiperbólico de seus dramas):

- Vas me dejar? No puedo creer, Anita. És una traicion! Yo te amo!

Quando me contou que roubou dela a carta e rasgou como um animal logo meneei a cabeça em reprovação. Quantas vezes não tive essa reação ao ouvir suas histórias de amante tresloucado. Disse que pegou seu isqueiro e queimou os pedacinhos, como as cinzas pudessem significar a ideia mudada, a permanência da sua venerada mexicana no Brasil. Anita gritou, claro, disse que ele era um boçal e que não respeitava sua dor. O expulsou a socos de casa e ele, como sempre, sentiu um pungente prazer naquela situação. Rômulo gostava dos amores proibidos ou vetados por circunstâncias. Sempre pareceu um escravo do seu romantismo, um masoquista passional, quase uma espécie daqueles poetas tuberculosos do movimento romântico que cantavam a fugacidade da vida e dos amores desperdiçados, em lamentos versificados.



O fato é que aquela foi a última vez que encontrei Rômulo e a última vez que me narrou uma de suas novelas emocionais. Isso faz, estimo, uns dois anos. Lembro-me disso agora por ocasião de sua morte. Sim, Rômulo, o romântico em extinção, nos deixou, extinguiu-se de fato. Soube por um amigo em comum, que me deu a notícia numa conversa telefônica. Rômulo foi assassinado quando saía do trabalho, por um sujeito que, segundo testemunhas, trajava coturnos e um capote longo, preto bem escuro. As investigações indicam que tenha sido um matador de aluguel que teria sido contratado por um marido ferido. Rômulo saia com uma dona casada e foi baleado por isso. Teriam, ele e a senhora, se atracado pela primeira vez no Bixiga, numa noite italiana, quando, inconformada com a traição do marido, foi lá exercer a vingança. Passaram a se ver semanalmente. Mas Rômulo, o nosso romântico fundamental, deixava rastros em buquês de flores e caixas de chocolate. O fato de ser comprometida jamais deve ter sido pra ele um impeditivo, pois o amor sempre era um grito mais alto em sua vida. Um marido enciumado e um amante de coração latejante. Foi um cardápio mortal. Agora lembro de Rômulo como um exemplar do romantismo suicida.

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