quinta-feira, 29 de março de 2012

Shame - a escravidão provocada pelos instintos



Shame, filme dirigido pelo brilhante Steve McQueen (homônimo do famoso ator de "Papillon"), é basicamente sobre escravidão. O sujeito escravo de seus próprios desejos, aprisionado em uma libido desenfreada. Poderia não ser uma prisão, caso o protagonista vivido por Michael Fassbender vivesse o prazer sem culpas e tivesse controle dele em suas ações práticas, sem deixar que seus 'excessos' - terrível usar este termo - atrapalhem sua vida cotidiana.

O que acontece é que ele é um compulsivo sexual. Um executivo de modos elegantes esconde um 'depravado' que masturba-se incontinente, consome videos, revistas e objetos sexuais e experimenta aventuras lascivas diversas. No computador do trabalho, o HD está 'podre', conforme relata o próprio chefe, de tantos conteúdos sexuais que abriga. Seus olhos parecem sempre buscar a satisfação, seja no metrô, onde olha sôfrego para uma moça que lhe corresponde, ou na janela em que observa uma transa alucinada.

O filme, porém, passa a léguas de distância da polêmica barata. Ele fotografa a solidão do personagem que sofre por sua necessidade permanente de sexo. E a relação com a irmã, vivida pela normalmente doce Carrey Mulligan ("Educação" e "Driver") que vive desta vez uma intensa mulher. Ela é algum oposto do irmão. Não por ser assexuada ou pudica, nada disso. Mas porque entrega-se romanescamente ao amor. Ela, assim, desnuda a falta de afetos na vida do nosso protagonista. É uma espécie de concavo e convexo que provoca fissuras e expõe, a seu modo, as dores de cada um.

McQueen, que é artista plástico. faz uso magistral da imagem. Sempre de forma utilitária, com a finalidade de nos mostrar a angústia permanente - a música sóbria e pontiaguda colabora para essa sensação. Atordoado pela arrepio amoroso da irmã com seu chefe, o rapaz sai correndo pelas ruas de Nova York e a câmera o acompanha nessa abstração urgente. Quando ele discute com ela, no ápice dramático do filme, em que há o escarrar mútuo das fragilidades, a TV, turva, passa um desenho em preto-e-branco, como a provar a canção de Marina Lima: "As coisas não precisam de você".O sofrimento do viciado é dele e de quem o acompanha de perto, mas o mundo está alheio.

A questão central é esta: a razão pode ser biológica, mas os danos mentais são inequívocos. Um organismo dominado pelo testosterona produz efeitos devastadores, culpas, no seu dono. E ele, por mais que lute, não consegue desvencilhar-se dessa escravidão. A culpa por não conseguir ter relações amorosas ganha contornos efetivos quando na única situação em que ele tem algum contato afetuoso com alguém a sua libido se apaga e ele, vejam só, brocha! A tentativa de consolação da moça esvai-se em seu silêncio, que esconde o desejo de não ter desejos. Minutos depois ele já está em outra relação sexual, com a ardência recidiva.

PS? uma cena singela do filme me marcou profundamente. O personagem de Fassbender, em sua tentativa de viver socialmente e fugir do vicio, vai assistir a uma apresentação da irmã em um bar. Lá, ela canta a clássica "New York" com doçura e lentidão, levando-o às lágrimas. Pungente!

terça-feira, 27 de março de 2012

As metamorfoses de um maluco beleza



Raul Seixas foi uma explosiva metamorfose ambulante. Foi uma mosca que pousou em sopas diversas e parecia um profeta nascido dez mil anos antes de seu tempo. Enfim, uma malucaço beleza que viveu em intensidade brutal e nela se consumiu. Isso tudo pode ser conferido no documentário Raul - O início, o fim e o meio, de Walter Carvalho, que está nos cinemas.

O material, que foi premiado pelo júrio no última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é esplêndido. A começar pelas imagens de arquivo que mostram o barbudinho cantando e contorcendo-se no palco, fazendo dueto com o antigo parceiro Paulo Coelho em dos seus últimos shows (o escrevinhador de "Veronika decide morrer vira coadjuvante diante do microfone e cala-se no refrão) e desmoronando bêbado em uma apresentação que despertou a ira do público, com latas de cerveja atiradas. Os depoimentos também são preciosos e com algumas revelações que não contarei aqui para não ser tachado de "estraga prazeres".

O mérito maior do trabalho, a meu ver, é seu caráter jornalístico. Uma cinebiografia que teve ares de biografia (nos livros costumamos ter mais devassas que nos documentários, que se valem de imagens para se bastar). Marcelo Nova e Paulo Coelho são apertados a falar de temas espinhosos. O primeiro sobre o suposto aproveitamento que fez de um Raul Seixas enfermo até a última gota para ganhar prestígio (ele é defendido por ninguém menos que Caetano Veloso, que faz uma maneirista interpretação da genial composição Ouro de tolo). Já o "mago" das vendas de livro Paulo Coelho, que foi convidado por Raul nos primeiros anos para fazer umas letras (várias clássicas), rechaça ter sido o responsável pelo consumo desenfreado de drogas do companheiro, embora admita ter apresentado heroína, haxixe e outras substâncias a ele. "O Raul era adulto, casado, com filho...", alega o renomado escritor. E a penúltima mulher de Raul emociona-se ao ouvir um áudio que desconhecia.

O batalhão de ex-esposas de Raul se faz presente no filme, inclusive as que moram nos Estados Unidos. Afinal, não foi ele que cantou que quem "gosta de maçã irá gostar de todas porque todas são iguais". A mãe e o irmão são figuras constantes no material, além do seu parceiro temporão Claudio Roberto, que, segundo o próprio, traria mais musicalidade para o rapaz, já que Paulo Coelho nada sabia de música.

Toda a loucura pacífica do músico se desnuda em 120 minutos bem alinhavados. A Sociedade Alternativa, os impulsos criativos, as ligações afetivas, as mágoas e sua importância para o rock, que misturou de baião a rap. De certa forma, um antropofágico adorador de Elvis Presley. Isso foi Raul no início, no fim e no meio. Talvez por isso seus reverenciadores, que encontram-se anualmente para festejá-los, dizem que ele está em todos nós, em cada um, circulando no espaço e no tempo.

sábado, 24 de março de 2012

Chico Anysio: a morte de um, cem, mil...

Eu tinha 12 anos quando o trapalhão Zacarias morreu, em 1990. Lembro que me debulhei em lágrimas como se tivesse perdido um parente ou amigo. Eu era fã de todos os programas humorísticos da Globo e no meu coração que começava a "adolescer" aquela era uma perda irreparável. Eu não entendia como aquele sujeito que me proporcionava tantas risadas dominicais deixava de existir. Quem me dera tanta alegria me fazia então chorar. Eu nunca mais veria novos quadros do Zacarias...

O mesmo aconteceu ontem, ao saber da morte de Chico Anysio. A diferença agora, claro, é que as lágrimas foram escondidas, na sala de casa, pela vergonha adulta de se expor. Mas a dor está aqui, porque é novamente um pedaço da minha memória sentimental que se move. Chico, como bem destacou a belíssima capa do jornal carioca O Dia, utilizando fala de Drummond, não era um, era tantos. Com ele morreram Justo Veríssimo, Bento Carneiro, Alberto Roberto, Tintones, Bozó, Coalhada, o professor Raimundo e uma infinidades de outros tantos tipos criados por essa mente prodigiosa e incansável. A dor, portanto, multiplicou-se, pois um batalhão de figuras clássicas da nossa TV (e, antes, do rádio) nos deixou.

Sempre me impressionou demais a capacidade comunicativa de Chico. Antes de começarem as esquetes da inesquecível Chico City e sua gente, ele desfilava seu talento de cronista. Contava histórias de forma deliciosa. Era o jeito de falar popular, as expressões... Alguém disse por aí que era um professor, e por isso Raimundo, da Escolinha, seu personagem mais fiel. E era isso que ele passava mesmo nesses bate-papos com a plateia (o programa era gravado em um teatro) e o telespectador: dava aulas de cotidiano. Histórias saborosas contadas com elegância e simplicidade.

A última entrevista de Chico, dada à Patricia Poeta, no Fantástico, impressiona pela lucidez. Depois de ter ficado um tempão em coma, já com 80 anos, sua memória permanecia intacta, profunda, e o jeito de tagarelar ainda era o mesmo. Ao dizer que "o sucesso é um acidente, por isso é preciso ter humildade", mostrou o que se leu sempre a seu respeito: uma maturidade que só mentes sábias atingem.

Chico conseguiu, com sua criatividade e versatilidade, imprimir um humor leve e ao mesmo tempo crítico. Tim Tones, muito antes da massificação da fé manipulada, arrancava dinheiro dos fieis com promessas de eternidade. A compra de indulgências na Idade Média era transferida para a encenação, com a música de fundo dando o tom crítico: "Tim Tones, glória, Tim Tones". Justo Veríssimo, o político com alergia a pobre e inescrupuloso, era um retrato de muitos dos nossos congressistas e chefes de governo. Serve até hoje, é atual. Havia também tipos nordestinos, como Painho, ou futebolísticos, como o repórter Bozó e o "craque" Coalhada.

A generosidade de Chico fica cristalizada no seu gesto de, ao refundar a Escolinha do Professor Raimundo, fazê-lo para resgatar talentosos humoristas da velha guarda que estavam proscritos, tais como os gigantes Brandão Filho, Grande Otelo, Lucio Mauro, Rogério Cardoso, entre tantos outros. Essa faceta do homem de mil facetas mostra a paixão que tinha pelo ofício e a devoção a quem compartilhava desse ofício. Era comum em entrevistas ele reverenciar diversos companheiros de trajetória, dar-lhes tintas fortíssimas.

A criação de Chico é parte tão forte do DNA da minha geração que imperceptivelmente seus personagens se manifestam no meu cotidiano. Na redação do LANCE! eu e vários companheiros repetimos os bordões do âncora do jornal que apresentava as notícias com um "erre" forte: você rrrrirrrá, você se apaixonarrrrrá, você chorrrrarrrrá. Ou então, o "erre" saltado da ignorância desconhecida de Alberto Roberto: você já garavou algum porogarama? E até Nazareno, com seu vitupério à mulher (Caaaaaalada), entrava nos chistes.

O humor de Chico deu carimbo para a arte da risada no Brasil. Infelizmente essa gente também morre, desencarna e nos deixa órfãos. Como ele mesmo afirmou na última entrevista, os humoristas são insubstituíveis. Nunca mais haverá um Ronald Golias, um Mussum, um Francisco Milani, um Zacarias... Para nós fica a memória, a lembrança afetiva. Não tem valor a alegria que Chico Anysio nos deu por anos a fio. Se a alegria é a prova dos nove, como disse certa vez o modernista Oswald de Andrade, Chico ratificou isso.



Descanse em paz, velho Chico!

domingo, 18 de março de 2012

A força dos gestos em um filme sobre imigração



"Tanta gente canta, tanta gente cala. Tantas almas esticadas no curtume" (extraído da canção O ciúme, de Caetano Veloso) 

A força dos gestos! Foi sobre isso que pensei durante e, principalmente, depois de ver O porto (Le Havre, no original francês), que está em exibição. O escritor que abandona o ofício e se refugia numa cidade portuária, a já mencionada Le Havre, na Normandia, norte da França, para viver uma vida simples, desapegada, como engraxate. Isso por si só já é espantoso, de um ousado despojamento: de escriba e engraxate, mamma mia! De repente, Marcel Marx, vivido por André Wilms, vê-se diante da situação em que o fará ceder à tal força do gesto. O humanismo que reside, acredito eu, em muitas pessoas. Ele acolhe um garoto africano, migrante ilegal em um país cujo tema do trato com os estrangeiros está sempre na ordem do dia. A bem da verdade, a questão da imigração e seus desdobramentos políticos e econômicos estão em pauta há muitos anos nessa globalização parcial. 


Ao ver o pequeno "apátrida" se escondendo nas pedras do porto (lembrei de Gesùbambino cantado pelo Chico: "Esperando, parada, pregada na pedra do porto com seu único e velho vestido cada dia mais curto), o nosso "herói" estende-lhe a mão. Uma parábola cristã essa. O primeiro ato é dar a ele sua marmita, com um ovo cozido, um pedaço de baguete e alguma bebida. O passo seguinte é abrigá-lo em sua casa. E faz tudo escondido da polícia de imigração e seus olhos de lince, embora possa haver nela, como o filme mostrará, também sinais de afeto delicadamente humano. 


A saga de Marx (li por aí que é uma homenagem tanto para Karl Marx quando Groucho, e há no personagem gestos do pai do comunismo e do comediante americano, de fato) para abrigar o infante nascido no Gabão é acompanhada da sua dor pela ausência da mulher, internada em um hospital para tratar terrível doença, o câncer, a antiga insidiosa moléstia. O filme, de um colorido antigo, lembra o tom dos filmes da Nouvelle Vague. Parece Truffaut! Os atos mais comezinhos são mastigáveis pra quem gosta, como eu, de pequenas coisas. A forma como o sujeito come o pão, varre a cozinha e conversa, terno, com o seu pequeno amigo. Há também um cão no filme, como metáfora clássica do companheirismo. 


Uma questão pulsante do filme para mim é: há leis que podem sim render-se a gestos. É bobagem achar que isso cria uma socidade de anomias, sem normas. Quando o coração fala mais alto, o indíviduo pode se sobrepor à carga do expurgo. A legislação determina a expulsão do imigrante ilegal. A expulsão do garoto é uma violência moral, porque o joga na sarjeta e ignora preceitos humanísticos. Entra na onda de extrema-direitas, com seus Le Pens da vida, que agem na mão da demagogia barata. Ao esconder o menino e ir atrás do seu avô, o literário engraxate dá um nó no legalismo em nome do gesto fraterno. Olha eu aqui mais uma vez falando em cristandade... 

Encontrei paralelo com o argentino "Um conto chinês", que resiste intimorato em cartaz em São Paulo. Nele também há o homem maduro a ajudar um jovem, no caso um chinês, a driblar as durezas da vida de migrante e religá-lo aos laços familiares. E também há gestos minimalistas deliciosos, como o jeito que guarda e conta os parafusos que vende em sua loja e chia com os fornecedores "trapaceiros". E o destampar de uma humanidade não aparente. O personagem vivido pelo fabuloso Ricardo Darin aparenta ser um escudo, mas os gestos têm uma força humana incrível. Ele é bruto ao criar uma contagem e deixá-la fixada na geladeira para o seu hóspede saber que tem prazo para resolver-se. Mas ao mesmo tempo, quando a situação fica extrema, ele se enterniza. Pessoas assim conhecemos e conheceremos muitas. Elas têm essa beleza de revelar-se doces quando as temos como pétreas. São capazes de pequenos gestos engrandecedores. 


PS: Caetano Veloso tem uma canção chamada "O ciúme", que remete ao rio São Francisco - uma declaração de amor entre tantas ao rio. Há nela uma frase que me faz pensar no que são os imigrantes mundo afora, sejam eles os haitianos trazidos pelos tais coiotes ao Brasil, os mexicanos nos Estados Unidos, turcos na Alemanha ou os africanos, que migram, voluntaria ou involuntariamente, desde a época do doloroso tráfico negreiro.Por isso ela serviu de epígrafe para este post: "Tanta gente canta, tanta gente cala. Tantas almas esticadas no curtume".



sexta-feira, 16 de março de 2012

Não se afobe não que nada é pra já

O show de Chico começa e a obra se esparrama pelo teatro em uma história farta de amores, dramas, desencontros, desejos, suspiros...Ouvidos atentos, bocas cantantes e olhos marejados! Meninos, eu vi! Foi contemplação incrédula do início ao fim. Nos dois primeiros atos, o espírito da montagem se insinua, faceiro. O velho Francisco fala de passado e presente com nostalgia, pois vida veio e lhe levou. Na volta ao samba, a mensagem de que assim mesmo o show devira continuar, apesar de o artista ser quase um setentão.Pensaram que ele não vinha mais, pensaram? Cansaram de esperar por ele?

E eis que Vinícius entra espiritualmente em cena. "Desalento", parceria com o poetinha, sai da boca do compositor em seus clamores amorosos mais doloridos: "Vai e diz, diz assim como sou infeliz no meu descaminho. Diz que estou sozinho sem saber de mim". Após tantos esgares apaixonados, viria "Injuriado", descascando revoltas irônicas contra o ex-amor. "Dinheiro não lhe emprestei, favores nunca lhe fiz, não alimentei o seu gênio ruim. Você nada está me devendo, por isso meu bem não entendo porque anda agora falando de mim".

As canções do novo CD, que atende pelo singelo nome de Chico, já começam a se desatar, com caminhos tão iluminados de sim. E as mocinhas filmam, com seus celulares e, uma na minha frente, encolhe-se atônita, mexendo nos cabelos com charme pornograficamente buarqueano. Ela tinha olhos de azul claramente espantoso, quase desfazendo sua silhueta a cada música. O artista sopra que um cão de hora em hora lhe arrancava um pedaço. Até que ouvimos o artesão das palavras  não saber se era a Aurélia ou Aurora a quem havia oferecido músicas feitas por outro compositor. Um falso ladrão nosso mestre!

Então ouvimos o amante contar-nos que seu "cabelo é cinza e o dela é cor de abóbora". Assim lamenta e agradece uma paixão tardia que o tempo lhe promete tungar ("Meu tempo é curto, o tempo dela sobra"). E logo diz que o seu coração ela "ora brinca de inflar, ora esmaga". E enseja o aviso: "Se eu soubesse não andava na rua, perigos não corria, não tinha amigos, não bebia". Mas como não sabia, nos brindou com uma continuação de Vinicius e Tom em "Sem Você 2", um lamento do tamanho de um desalento em que, por ela, esqueceria do futebol e do museu.

Então, o artista retorna às dores de camarim, como o fez muitas vezes de empréstimo Cauby Peixoto, e garante que chorou até ter dó de si naqueles bastidores. Seria na coxia? No soldo, vem um punhado de todos os sentimentos que prometem regresso: "Depois de te perder, te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza". Ah, o tempo da delicadeza! Quantas mocinhas e mulheres libertaram lágrimas nesta hora. Eu presenciei. Lágrimas delicadas, sinceras, floridas.

De repente, o eu lírico feminino do compositor se faz presente. Ele não faltaria! A mulher que nele reside sobe ao palco e fala que seu amor tem um jeito único de "pousar as coxas entre as minhas coxas quando ele se deita". Terezinha se aproxima e conta que só o terceiro, que nada lhe ofereceu, mereceu seu mais profundo e tórrido amor. Ana de Amsterdã pede passagem e suas lamúrias de meretriz de além-mar se misturam em frenéticas "vendas, trocas, bocas, loucas..." E o teatro ganhava ares de dezembro de um ano dourado, quando tornava-se duro rever o grande amor. Mas, sob medida, a verdade se explicitou. O parceiro não presta, assim como ela, e devem dividir numa alcova suas imperfeições humanas.

Logo, mais uma mulher estrangeira domina o espaço. É Nina, mais recente integrante da casa das mulheres várias de Chico. Ela mora na Rússia e quer carregar o homem para conhecer a noite de Moscou. Homem que conta tomar alguma vodka e mergulhar nesses descaminhos - os mesmos do desalento, lá do início? Eis que surge uma valsa brasileira e o amante chega mil dias antes de conhecer seu objeto de devoção.

Em um espasmo, a plateia vai ao delírio. É a hora e a vez de Geni. Para tacar pedras imaginárias, não houve hesitação. Mesmo as moças mais delicadas, eu testemunhei, exaltavam-se no refrão "Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir". Quanto sadismo real!

O artista deixa de lado a pouca vaidade que já possui e chama a potência vocal do baterista Wilson das Neves. E a apoteose. Na mão dele o coração suspira quando a moça se atira no salão. Apenas Tereza da praia para acalmar a dúplice alma dos contendores. O músico parceiro retorna para o instrumento e Chico pode emendar a violeira com o canto do baioque. E vem o aviso mais revoltoso: "O meu riso é uma fenda escavada no chão". São os gritos emocionais que deixam a gruta para verbalizar o qu sentem.

Houve tempo para uma homenagem ao rapper Criolo, num Calice (-se) improvisado. E o espaço que sempre se dá a quem sofre. O violão de João Bosco ficou ao fundo nas súplicas do escravo que jura não ter visto Sinhá despir-se. E a pergunta da diferença carnal: "Por que me faz tão mal com olhos tão azuis". O ierieri (ideia do Bosco) prenuncia o epílogo da magia. Mas hoube bis para a Barafunda de Garrincha, Mandela e outros tais. E o Rio transformado, talvez, na cidade submersa dos futuros amantes. Pois ficou no coração um até logo. Amores serão sempre amáveis. Chicos serão sempre buarques. Nada é mesmo para já!

sexta-feira, 9 de março de 2012

Paratodos, um albúm de Chico para ornar vidas



Sou fã até as tripas da obra de Chico Buarque de Hollanda. Até porque ele fez "das tripas a primeira lira que animou todos os sons". Isso é sobejamente conhecido de todos que me cercam. Na próxima quinta-feira estarei no HSBC para ver pela terceira vez um show do que considero o maior compositor e letrista que já tivemos e teremos (dúvida que alguém possa produzir em quantidade e qualidade o que esse rapaz já fez - e ainda fará - desde 1965, quando lançou o compacto com "Sonho de um Carnaval" e "Pedro Pedreiro". Então, resolvi revisitar o seu álbum "Paratodos", uma joia lançada em 1993. E o espanto entusiástico renovou-se. Que monumento!

O disco (sei que o termo é antigo, mas acho preciso) tem tom autobiografico. O música-título remete à canção em que homenageia todos que pavimentaram e pavimentarão ("Evoé, jovens à vista") o nosso cancioneiro, desde Noel, uma espécie de prévia buarqueana, até os contemporâneos Caetano e Gil. E nela uma exaltação a Tom Jobim, o maestro soberano do artista de olhos verdes. No especial Chico e as Cidades o poeta (sim, senhores, poeta!) diz que Tom e Niemeyer foram seus faróis. Eis o que ele disse:

“Depois larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando minha música sai boa, penso que parece música de Tom Jobim. Música de Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar”

E falando em Tom, ele está presente no álbum. Na faixa "Piano na Mangueira", em que a tabelinha dos dois repetiu outras, como em "Anos Dourados" e "Sabiá" (vencedora da fase brasileira do II Festival Internacional da Canção). Nela, a devoção à escola verde-e-rosa e às cabrochas se faz presente, com os teclados de Jobim dando todos os nortes.

A exaltação a quem produz arte não se resume em Paratodos aos músicos, ela vai além. Em "Tempo e artista", nosso Chico compõe uma letra magistral sobre as agruras que a passagem do tempo impõe a quem faz da sua criação algo atemporal (as obras são eternas). A narrativa vai expondo as armadilhas desse algoz:

"Já vestindo a pele do artista o tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco apenas abre a voz e o tempo canta
 Dança o tempo sem cessar, montando o dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama que ainda está por ser escrito"

Há também a calejada dobradinha com Edu Lobo na lacrimosa "Choro bandido", numa poética infinita. O trovador que admite sua inferioridade diante da beleza amada mas que a deixa enredada. O verso deixa claro, sem titubeios: "Mesmo que você feche os ouvidos e as janelas do vestido, minha musa, vai cair em tentação. Mesmo porque estou falando grego com sua imaginação". Essa canção casa com "Sobre todas as coisas", que já foi gravada por Gil, Betânia e Maria Rita. A divinização da mulher se faz presente, sendo de seu ventre "que jorra o leite e o mel, mas esses vales são de Deus". A música do inicial ao fim é um implorar pela correspondência amorosa.

"De volta ao samba" repete o clamor, porém em tom inesperado. "Pensou que eu não vinha mais, pensou?". Porém, é o batuque o alvo, a música, que é centro da vida do compositor, quem não esperava mais por ele. É mais ou menos como a faixa que abriu os shows do CD passado de Chico: "Voltei a cantar porque senti saudades do tempo em que eu andava na cidade". Não á toa o mestre sempre ressalta que no processo de composição há fadiga e tempos depois as saudades de dedilhar novos acordes e criar novas músicas.

A faixa "Outra noite" volta à temática do divino presente em "Sobre todas as coisas" e do tempo, já protagonista de "Tempo e artista". Desta vez é a repetição, os deja vùs, da existência: "Será que já não vi de modo impessoal e em tempo diferente um dia estranhamente igual? Dias iguais, avareza de Deus, passando indiferentes por estranhos olhos meus"



De todas as canções que urdem o álbum, porém, a mais conhecida certamente é "Futuros amantes". A música é outra a tocar na ideia temporal, com amores do passado influenciando os futuros, pois, no fundo, os romances são iguais em seu fundamento de germinação. "Não se afobe não que nada é pra já, amores serão sempre amáveis".

Em "Biscate" Chico sai um pouco da tríade precípua da obra e vai ao cotidiano de um casal, com tiradas humorísticas. É uma troca de farpas anedótica entre os amantes que reclamam da gastança de um e da apatia do outro. Gal Costa interpreta a voz feminina. Há delícias como quando o homem diz "Quem que te mandou tomar conhaque com o tíquete que eu te dei pro leite? Quieta que eu quero ouvir Flamengo e River Plate". E ela responde: "Telefone é voz de dama, se penteia pra atender!". Esse tipo de dueto amoroso, aliás, não foi novidade no cancioneiro buarqueano, basta lembrar de "Sem fantasia", que foi central no famoso show que Chico fez com Maria Bethânia no Canecão nos anos de chumbo.

O álbum não podia passar sem o toque social, o enfoque no marginalizado, uma característica notória da carreira do artista carioca. Em "Pivete", ele fala dos meninos que caem na marginalidade, roubam carros, fogem, e são, no fundo, Pelés e Manés - referência explícita aos jogadores de futebol. É um largo de esperança na desesperança.

Por fim, o recorte autobiográfico está fortemente presente em "A foto da capa". Nela, Chico refere-se a um episódio da sua adolescência, quando foi preso ao "puxar um carro", algo que fazia com colegas por diversão. Foi fichado como ladrão, com aqueles retratos de delegacia de frente e perfil. Essas imagens reais estampam o miolo da capa do álbum. Os trocadilhos que faz na letra são arrebatadores:

"É uma foto que não era para capa
Era a mera contracara, a face obscura
O retrato da paúra quando o cara
Se prepara para dar a cara a tapa"

Na composição Chico deixa claro, para saudação do tempo: "E o poeta que ele sempre se soubera claramente não mirava algum futuro". Somente um gênio criativo poderia esboçar tal ideia: o menino que um dia seria um craque das palavras naquele momento era fichado olhando para um horizonte, que seria pródigo, e não via nada.

Paratodos deveria ser um ornamento da vida de artistas, que vivem no tempo a devoção às suas musas.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O homem que não estava e estava lá



"Como se essa grande cólera tivesse lavado de mim o mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de signos e estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Ao percebê-la tão parecida a mim mesmo, tão fraternal, enfim, eu senti que havia sido feliz e que eu era feliz mais uma vez. Para que tudo fosse consumado, para que eu me sentisse menos só, restava-me apenas desejar que houvesse muitos espectadores no dia de minha execução e que eles me recebessem com gritos de ódio." (O estrangeiro, Albert Camus)
Um sujeito ensimesmado, que leva alguns segundos para dar cada resposta, mas ao volante é um besta-fera. O nome dele, nem desconfiamos e seguiremos sem saber. Não foi batizado, talvez. Um anônimo protagonista cuja pacatice se transforma em fúria assassina quando o caldo entorna. Eis um resumo do protagonista de "Drive", filme do dinamarquês Nicolas Winding Refn, que está no circuito. Um personagem que lembra em vários momentos Travis Bickle, o taxista sombrio do clássico "Taxi Driver" vivido por Robert de Niro (uma das atuações mais impressionantes que já vi!). Ele lembra um pouco "O homem que não estava lá", dos Irmão Cohen, e o personagem Mersault, de O estrangeiro, do Camus, pela aparente indiferença com a vida rodeante. Não somente ele nos remete ao filme de 1976, de Scorcese, como as câmeras que sondam do alto a urbanidade de Los Angeles (no caso anterior era Nova Iorque), a trilha sonora baladística e o definhamento moral de alguém consumido pela fúria na cidade grande. Um copião de um clássico mas com seus méritos indiscutíveis.

Ryan Gsolin, que interpreta o rapaz não nomeado (esse mistério me lembrou muito Cães de aluguel, onde os membros da gangue são conhecidos por cores), pinta e borda na meticulosidade. Ele, que de dia faz dublê de cenas malabarísticas de cinema com carros, e à noite, com sua destreza ao volante, ajuda bandidos a cometerem seus crimes (e avisa, você tem cinco minutos para voltar ao carro!). O olhar compenetrado, o ar sisudo, o palito no dente e o escorpião na jaqueta denunciam um antissocial. Mas o coração se deixa amolecer por uma meiga vizinha casada com um presidiário.

O ponto chave do filme é exatamente o mesmo do seu guru "Taxi driver" (o diretor não falou nada de inspiração, mas ela é muito óbvia). Esse rapaz sem muita alegria se vê tomado por uma paixão que inspira cuidados. No caso de Bickle era uma protistuta, interpretada por Jodie Foster e suas calças acima do umbigo. Já o anônimo afeiçoa-se pela personagem de Carey Mulligan e seu rostinho de freira (no filme "Educação" ela era mais rebelde!). E leva de roldão o filho dela, Benício.

Ou seja, temos o homem supostamente insensível tomado por vontade de cuidar. Ele não vive com a moça uma tórrida paixão, mas sim uma intenção protetora. Se Biclke queria retirar a adolescente do meretrício, o personagem de Gosling quer evitar que mãe e filho sejam alvo da criminalidade que abarcou o marido da jovem. É uma complexidade humanizadora que inspira no espectador afeto pelo protagonista, embora ele seja um contraventor. Quando você acha que ele soltará frases do tipo "você não sabe com quem está falando" ele faz um cândido aceno positivo com a cabeça. Mas essa sua devoção por uma causa pode fazê-lo também surrar uma mulher e chutar infitamente a cabeça de um inimigo no elevador.

                                         De Niro, como Travis Bickle - "a psicopatia urbana" 
Esse traço psicológico ambivalente do personagem já vale o filme! Una-se a isso a violência estilizada, com cenas originalíssimas no exagero, e tem-se um cardápio de gênero. Você que ainda não viu note uma das tomadas finais, de um assassinato na praia, que parte da areia rumo ao mar. Fiquei pensando na hora: um lugar onde de dia tantos banhistas tomam sol e crianças jogam bola servindo a um crime. O desespero no espaço da descontração. É dessas contradições que se faz a mente criativa de um diretor. É como o pugilista interpretado por Bruce Willis em Pulp Fiction escolhendo a arma para matar ou aquela cena no boliche, em Ouro Negro, em que o padre é arremessado nos pinos. A violência caricata de tão exacerbada. A sacada é o que vale. Afinal, estamos falando de cinema, com questões reais e questões menos reais.

                                                       Abaixo, um trailler de Drive



PS: Ryan Gosling está ótimo no filme, mas seria herético dizer que ele se equipara a De Niro em Taxi Driver. A atuação de De Niro vai ficando cada vez mais espantosa com o transcorrer do filme, quando sua mente vai adoecendo mais e mais. O seu visual punk na parte final é de antologia incomparável a meu ver.

domingo, 4 de março de 2012

Vingança comida crua e sem moderação

A vingança pode ser um prato que se come frio ou ser um m..., como pregam os adesivos de caminhão, mas tem lá suas delícias. O seu sentimento primário é saboreado desde tempos antigos. Está na raiz do que é ser humano. Na mitologia grega ela está presente na figura de Nêmesis, que força Narciso a enfeitiçar-se pela própria beleza na superfície de um lago e assim, abobalhado, paralisar-se até o definhamento, realizando-se dessa forma a vingança das moças por ele desprezadas. A Guerra de Tróia é um festival clássico de atos vingativos. Sua raiz está na ira da deusa Eris, ou Discórdia, após ser preterida no casamento dos deuses Peleu e Tétis. Por vingança, ela monta uma armadilha e cria rusgas entre outras deusas, levando ao conflito. Melenau, rei de Esparta, iniciou a guerra para vingar o rapto da esposa Helena pelo troiano Páris. Aquiles assassina Heitor para vingar a morte de seu amante Pátroclo. E por aí vai em lista infindável.

O princípe Hamlet até questionou-se sobre as vãs filosofias entre o céu e a terra e o estado do ser, em instantes de ponderação, mas seu senhor foi o desejo vingativo e por ele empunhou a espada para matar o tio Claudio em nome do pai. No seu romance Abril Despedaçado, o albanês Ismail Kadaré conta a história de um enorme circuito de vinganças. Montanheses no norte da Albania seguem o Kanun, conjunto de leis não escritas que determinam que o sangue derramado de um integrante de um clã deve ser vingado com a morte de membro de clã homicida. É a chamada vendetta, muito comum nas tripas da máfia italiana. As vinganças se sucedem e vão cumprindo uma função de limpeza que o termo insuspeita.

Assim, na mitologia ou na realidade, a vingança é protagonista desde sempre. Nos capitulos folhetinescos, os autores capricham na construção dos personagens vingativos. A mulher traida pelo marido arma uma dolorosa vingança a quem tanto mal lhe fez. À base da lei de Talião, no olho por olho e dente por dente, vinga-se na mesma moeda. Às vezes, com o melhor amigo do traidor, eregindo uma vingança cruel para que a dor de um passe para o outro. É a vingança rodrigueana, com requintes maquiavélicos. Nela aciona-se o botão do "quem ri por último ri melhor".


                                          A Deusa Éris, furiosa por não ter sido convidada para casamento de deuses, lançou a pomo da discórdia para vingar-se (a maçã era "dirigida à mais bela das Deusas"). O ato provocou, segundo a mitologia, a Guerra de Tróia.

O pensamento cristão, assecla de doutrina de oferecer a outra face, condena a vingança. Mas a alma humana na maioria das vezes ignora a voz do púlpito e acaba cedendo ao instinto, que queima a carne, de ver crepitar no fogo o autor de um dano. A vingança é o triunfo do sangue fervente, do orgulho ferido. Assim está gravado na história humana.

É justamente a vingança o motor de um dos melhores filmes produzidos nos últimos anos. Em Bastardos Inglórios, o inquieto Quentin Tarantino ficcioniza o desejo dos homens de boa vontade do século XX: vingar os que sofreram com o holocausto na Segunda Guerras Mundial. Um grupo de judeus, os tais bastardos, vai à caça de nazistas para escalpelá-los. Difícil não admitir a sensação de catarse ao ver as cenas, algumas cômicas, de hitleristas tendo o couro cabeludo rasgado. Censuramos a religião que vive dentro de nós, a pintar a vingança como pecado, para sentirmos espontâneo prazer nos atos sanguinolentos. Não deixa de ser uma arte da vingança as figuras caricatas de Hitler em vários filmes, como o Grande Ditador, A queda e o próprio Bastardos Inglórios. Gritão, mimado, gesticulador excessivo, o genocida é ridicularizado. Chaplin e Bruno Ganz nos redimiram! Esta, aliás, é uma vingança mais elegante, pois faz uso da expressividade artistica para redimir um pouco a maculada história de uma época.

Tarantino, diga-se, tem na vingança a pedra fundamental de sua obra. Kill Bill, feito em duas partes, é o símbolo disso. A noiva Beatrix Kiddo sofre um atentado coordenado por seu marido e vai atrás de cada um dos integrantes da seita para vingar-se topicamente.

A vingança pode ser um prato comido cru. Mas, cinema e literatura provam, as bocas famintas não distinguem as carnes.
rascunho