quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Dúvida desfeita ao amanhecer



Chovia muito forte, aos cântaros como dizia sua avó, e ela olhava hipnotizada os pingos que escorriam pela janela. A noite tinha sido frenética, repleta de novidades, a começar pelo homem ali, estirado na cama, que dormia pesado como chumbo. Mas para ela as noites de amor eram assim, sempre prenhes mesmo de novidades, pois vivia de sexo casual, não conseguia emplacar uma mísera relação. Sofria com o que um amigo apelidou de "síndrome da não-repetição". Não conseguiu pegar no sono e se mandou pra sala.

Tomou a liberdade de vasculhar a geladeira, raptou uma maçã e sentou com as pernas cruzadas no sofá. Ali espiava o gotejar na sacada, com o pano de fundo da noite paulistana repleta de luzes nos edifícios.
A cabeça doia um pouco, fruto da mistura de vodkas em série com o baile de pernas e braços voluptosos do exercício vital que praticou com aquele rapaz. Não sabia o nome dele, até desconfiava que tinha lhe falado durante a dança, já no cume da embriaguez mútua. E, depois, com os lençóis remexidos, a memória lhe trazia alguma coisa suspirada. Mas o esforço era vão.

Viu que no hack dormitavam alguns retratos dele mais jovem, com uns, supunha, 22 para 23 anos. Agora devia ter uns 15 a mais, já flertando com os 40. No retrato ostentava o rosto liso, barbeado, o opostos daquele que dormia com uma barba cerrada, já um pouco judiado e, para ela, mais másculo. Voltou a olhar os pingos e refletir sobre a vida, a indecisão, a surpresa. Era um baile de coisas. Ouviu um pequeno resmungo do homem, um "aqui não, aqui não".

Foi até lá, viu que o silêncio regressara e voltou para a sala. Provavelmente estava sonhando. Pensou em ligar a TV, dispersar-se do chacoalho ritmado da chuva, mas achou melhor não. Podia acordar o amante de ocasião e, sóbrio, vai que ele se indignasse e tivesse uma reação violeta. No fundo queria que ele acordasse e lhe contasse coisas da sua vida, abrisse alguns segredos. Não queria ir embora assim, trafegando num túnel repleto de incógnitas e aquela dúvida que vinha se eternizando relação após relação:

- Será que vai me ligar? Ao menos para dizer que gostou da noite e quer repetir? Ou me convidar para um jantar romântico, talvez..

Nas últimas três vezes deixou um bilhetinho ao lado da cama e nenhum dos desnaturados teve a honradez de dar um "alô". Tinha prometido que não iria mais repetir aquele roteiro, mas já havia fracassado no trecho principal. Culpava a bebida, a vulnerabilidade emocional, as duas juntas, nenhuma delas.. Era um poço sem fundo de perturbações. Lembrou da amiga que falava no hedonismo, no prazer desassociado das necessidades emocionais. Mas depois a sensação era sempre a mesma, não conseguia separar tão friamente assim:

- Não vai me ligar e eu vou me danar.Minha autoestima irá para o buraco e tudo recomeçará.

Voltou a mirar as lágrimas pluviais e pensar antes de tomar o rumo de casa. Será que não valia esperar amanhecer, comprar pães, suco, café e recepcioná-lo como se o apartamento fosse seu. Inverteria o sentido, o surpreenderia e assim teria chances de transformar aquilo num primeiro encontro bem-sucedido. Ou então simplesmente esperar, deitar ao seu lado, tentar conciliar o sono e ver o que aconteceria ao amanhecer. Ainda sentia um pouco de tontura alcoolica e guardava o cheiro dele no corpo. No fundo queria repetir a transar, queria sentir aquela pegada novamente, o suor, as expressões, stava com o tesão escorrendo. Resolveu tomar um banho e acalmar os instintos.

Depois da ducha, tomou a toalha que estava pendurada na porta e, enrolada nela, deitou calmamente ao lado do estático homem. Parecia morto, um faraó estirado na catacumba, nem a respiração era percebida. Ameaçou tascar-lhe um beijo no ouvido, que a ela se oferecia sem resistências. Encostou um pouco e lembrou que nem o nome sabia, ou melhor, esquecera. Veio-lhe à cabeça alguns palavrões que ele soltara durante os gemidos alucinados dela. A dominação, ela gostava. Mas queria amor na sequência. Era isso que vinha esperando há tempos. Seu anseio maior era esse. Diante daquela imobilidade e de sua covardia para sequer triscar os lábios nele, levantou-se novamente da cama. Passeou os olhos pela estante do quarto e viu alguns títulos que sugeriam os gostos do rapaz. Viu Bukowski, Kerouak, João Ubaldo e Hemignway.

Aquelas atitudes sexuais rimavam de certa forma com o que sabia daqueles escritores. Ao menos do trio estrangeiro, mais seco, ríspido, não dados a firulas. Tentava assim desvendar um pouco do parceiro de poucas horas. Seria ele um bebedor rotineiro? Um boemio de carteirinha que fizera dela mais uma presa. Nas fotos que vira na sala não apareciam outras pessoas. Nas que havia companhia, não era humana, eram cães. E muitos, vários. Ele segurando várias coleiras. Recordou-se daqueles passeadores de perros que viu em Buenos Aires quando por lá esteve. Seria sua profissão? No apartamento não havia animais, ou melhor, ouviu um piar constante e notou uma gaiola no fundo da cozinha. Então era assim: ele e o canário? Um sujeito de meia idade e um pássaro amarelo!

Havia alguns CDs no móvel da sala. A ela chamou a atenção especialmente uma coletânea da Jovem Guarda, com Ternurinhas e Tremendões.

- Mas será possível? - pensou.

Mas se questionou. Será que gostava tanto de Erasmo, Roberto e cia, em gravações dos anos 60, ou se tratava de algum álbum esquecido do pai, da mãe, outro parente ou mesmo de um amigo. Afinal, sempre temos algum objeto dos outros infiltrados entre os nossos. É comum. Até porque aquele era um disco ensanduichado entre Oasis, Led Zepelins e afins. Não fazia muito sentido. Não tinha mais nenhuma companhia que se alinhasse. A investigação por gostos a deixara confusa. Tentou imaginar aquele homem de olhos redondos, negros e firmes, e voz rouca alucinada, que nunca dizia o "s" dos plurais (pelo menos naquele noite, berrando "eu sou o bom, sou o bom, sou o bom!". Não, não casava. Mas como tentava afugentar rótulos da sua cabeça, decidiu que não se fixaria mais nesse tipo de miudeza.

As horas passavam, ela observava e nada de ele esboçar reação. O sol despontou, a chuva cessou e ela resolveu descer para tomar um ar e, quem sabe, tomar coragem para comprar os insumos do café da manhã que projetou. Não ía mesmo embora. Se tivesse que tomar um pé na bunda que fosse olho no olho, mesmo que por indiretas, nada de silêncio, submisso, falta de rastro. Admita tudo, menos as mesmas cenas já tão testadas e desaprovadas.

Ao passar pelo portão do prédio avisou ao porteiro que voltaria.

- Estou no 44, só vou comprar umas coisinhas e já volto - disse, acompanhada por um simpático aceno positivo.

Na padaria, olhou, olhou, olhou e desistiu. Não comprou nada. Poderia pagar um mico com sequelas muito forte. Resolveu retornar ao prédio. Na portaria, ouviu:

- A Valquiria já subiu.

Fez cara de espanto, mas segurou a onda e fingiu que conhecia.

- Ah sim, claro!

Mas sua cabeça subitamente entrou em parafuso. Em frente ao elevador ficou imaginando quem seria a tal de Valquiria e como reagiria à sua presença. Havia deixado na sala a sua bolsa e uma tiara azul cingida com pequenas madrepérolas. Havia descido apenas com a carteira, que nem usara. Se antes a angústia era para saber qual reação o rapaz teria ao vê-la ainda lá, agora ela ganhava contornos dramáticos com a possibilidade de que a moça (podia ser uma senhora também, não sabia) fosse a mulher dele. Atiraria sua bolsa pela janela? Atiraria nela quando adentrasse o apartamento? O que faria? Seus documentos estavam todos na bolsa, os originais, não tinha como arredar pé. Uma cilada tremenda!

Resolveu subir mas não entrar. Repousou o ouvido direito na porta e, raios, não ouviu nada. Um silêncio profundo apenas. Testou a maçaneta e a porta estava aberta. Empurrou-a devagar e viu que a bolsa seguia sobre a poltrona, no mesmíssimo lugar que deixara, e não havia nada remexido. Foi então que ouviu um pequeno grunhido rouco de prazer.

- Meu Deus, eles estão transando. O cara é uma máquina! E eu uma palhaça.

Pegou a bolsa e foi saindo de mansinho. Mas recuou. A curiosidade, aliada às traumáticas experiências anteriores, teve peso maior. Foi chegando perto do quarto, viu que a porta estava encostada, empurrou lentamente e notou que a moça fazia calmamente uma massagem no homem, que permanecia incrivelmente na mesma posição que estava quando ela desceu para buscar a comida do café que não aconteceria. Observou que ela  ouvia música, pois carregada fones nos ouvidos. E apertava músculo por músculo dele com bastante força, brutalmente. Ele estava nu em pelo e ainda guardava  o forte odor da transa de horas atrás. De repente, a moça, que tinha mãos repletas de veias grossas e potentes, estufadas, começou a tirar a roupa. Os dedos eram longos e carnudos, passando ao largo da feminilidade. O rapaz se remexeu um pouco lateralmente, mas permanecendo de bruços e, agora, com as pernas afastadas. E qual nao foi seu susto ao entrever o membro ereto da massagista, que na realidade era o massagista, e ficou ali, apoplética, enquanto ela, ou ele, que tinha seios notáveis de travesti penetrava bruscamente o rapaz. Só deu tempo de escutar um "Ou". Puxou a porta de volta, ajeitou a bolsa e pensou, ainda atônita:

- Cada um que me aparece.

Escreveu o bilhete com seu nome e telefone e deixou ao lado da televisão. Saiu do apartamento convicta de que é sempre bom esperar o dia amanhecer para que as coisas se revelem sem emudecer do telefone.

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