terça-feira, 13 de agosto de 2013

Romeu acorrentado à ingrata Julieta

Romeu acorrentado à ingrata Julieta 

Conto livremente inspirado em "Chão de giz", de Zé Ramalho

"Há tantas violetas velhas sem um colibri"

Meus dias de acorrentado ao calcanhar de Julieta não têm sido fáceis. Cada dia as crises de abstinência amorosa aumentam mais. Sou um adicto do romance, que neste caso é uma droga que causa dependência infinita. Quando aceitei o pedido, foi por amor. Quando temos muito amor, somos escravos do sentimento. Assim, nada mais natural do que prender-se a tendão, calcanho e outras coisas mais do costado do pé da mulher amada. Aliás, a ideia, quando proposta, me agradou bastante, nem precisei de reflexão, pesos e contrapesos. Seria a garantia de que iria aonde ela fosse. Quando temos muito amor, queremos a pessoa toda o tempo inteiro, com exclusividade, acompanhando seus passos, certificando-se da presença permanente, participando de sua romaria pela vida. Poderia assim ter a vigília e seus vestígios.

A corrente que prende meu pulso direito ao calcanhar direito de  Julieta é de extensão razoável, uns quatro metros, mais ou menos. Combinamos um tamanho que evitasse o enjoo, não nos obrigasse a sentir o mútuo cheiro a todo momento, ter que ficar no banheiro enquanto o outro se aliviava, poder ler o livro sem fungadas obrigatórias no cangote e outras inconveniências. É de prata, com nós grossos, portentosos, que compramos especialmente de uma empresa especializada nesses artigos. 

Nesses quatro anos acorrentados, eu no pulso, ela no calcanhar, muita corrente tenho arrastado. O que achava que seria bom tornou-se ruim. Nos acorrentamos quando o amor era tamanho, vulcânico, que enchia a gente de felicidade e grude. Como havíamos aberto uma empresa e trabalhávamos em casa, juntos, termos um elo material foi um pedido que soou como uma ordem. Eu me submeti, essa é a verdade. Agora, dão-se diversos inconvenientes. Outro dia, após três meses sem relação sexual, me agastei, gritei e tentei forçá-la a ir à cozinha comigo. Estava decidido a pegar um  facão e romper a corrente. Ela me puxou e me machucou, para seu gáudico. O pulso, não sabia, sofre mais que o calcanhar. Eu aceitei um elo desigual. Dois riscos vermelhos surgiram na pele que recobre os ossos do punho, os restinhos de rádio e ulna que vêm desde o antebraço. Desisti de forçar e chorei, confesso que chorei!



Já faz um ano que não nos relacionamos amorosamente, mas para sempre fui acorrentado no seu calcanhar. Julieta diz que não me ama mais, mas não consegue se desacorrentar de mim. Um dia, desolado, ouvi ao fundo um verso, numa canção nostálgica, que parecia ter sido feito para o meu suplício. Dizia o cantor, de voz roufenha: ""Atiro balas de canhão, é inútil, pois existe um grão-vizir". Eu ainda nutro fortes sentimentos por ela e me exponho a dores cotidianas, não consigo matar o grão-vizir. Sem me amar, mas acorrentada a mim, ela liga para amantes e sou obrigado, em noites frias e chuvosas, a sentar-me no corredor enquanto ela, no quarto, solta frêmitos e gemidos de amor profundo. Fui castigado pela deusa Lucinha como prometeu acorrentado por Zeus. Romeu acorrentado a Julieta, que me despreza. Estou prostrado neste Olimpo pessoal. Eu a tenho e não tenho. Tenho uma corrente que é minha e dela. É a comunhão de um bem material e uma relação morta. Já tentei forçar o desmanche desse vínculo prateado, ela não deixa. As chaves só ela sabe onde estão e remexer na casa para procurar não posso sem que ela veja - a extensão não é suficiente para ações escondidas. 

Na lona vou a nocaute outra vez! A tristeza acorrentada é pior, não vive-se luto. Não há como esquecer um amor que não nos ama mais estando acorrentado a ele. A força do espaço físico é uma torrente. Pelos estalos da matéria surfam as batidas do meu coração. A imagem de Julieta é uma constante, nos esbarramos, eu ouço suas decisões diárias, sua risada fácil e suas crises hormonais. Freud explica!. Se apenas vivêssemos juntos eu poderia me trancar num quarto, ficar no jardim, sair correndo, chamar a polícia... Mas com a corrente, tudo é vão. Aos 35 anos, Julieta tem dotes sádicos. Quer a garantia do pertencimento, mesmo desamado. Tornei-me uma daquela almas russas que trabalhavam nas fazendas dos grandes proprietários no século XIX, descritas dolorosamente por Dostoievski em seus grossos romances. Eu sirvo ao deleite de Julieta. Nem conta mais com meu trabalho na empresa, faz tudo sozinha. Quando tenho fome e quero buscar uma maçã ou um copo de leite na cozinha ela se planta no sofá  da sala e não cede a alguns passos para que eu alcance a geladeira. Quando preciso dormir, resolve lavar as violetas velhas do jardim. Nesta vida de condenado passional sinto-me como essas pobres flores que não têm mais nem um solidário colibri. É o alijamento forçado, um exílio em solo pátrio. 

Já pensei em me matar, mas não tenho coragem. Por esses dias andei pensando. No fundo, deveria ser um orgulho estar acorrentado a Julieta. Ela é linda com seus lábios rosáceos sempre ameaçando contrações laterais. Mas não me beija mais! Seus cabelos ondulados, arruivados, sempre semi-molhados, não posso tocar e, quando tento, logo ergue o punho ameaçadoramente, com aquela argola espelhada que envolve seu pulso e dá início a essa pungente corrente da desilusão. Os olhos verdes-claros, pulsantes, cheio de vida e fúria, quase não me olham. Nem por migalhas sofridas e um espasmo de afeto

Não quero violentar Julieta. Nos primeiros dois anos de correntes fomos muito felizes. Essa lembrança, acorrentada na alma, me faz recuar de qualquer desatino. O que eu preciso é de uma corrente positiva, de um sopro divino, para que ela volte a me amar e me desacorrente. Para vivermos um amor livre, em chãos de giz. É um drama corrente na minha vida!

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