terça-feira, 7 de maio de 2013

A falta de brilho em uma mente sem lembranças


 Joel (Jim Carrey) e Valentine (Kate Winslet) 

"Me esquece!". No auge de uma separação, em meio ao furor, essa frase surge clássica nos rompimentos amorosos. O pedido para que o outro apague tudo da memória, todos os anos de relação intensa, de amor profundo, de tempestades e bonanças. O berro dolorido é um desejo, um urro, uma prece de suposta libertação. Apague-me da sua memória, eu te apago da minha e então a vida se apaziguará. Mas bem sabemos que concretamente não é possível estalar os dedos ou dar uma piscada e, assim, derreter de nossa caixa craniana alguém que conosco viveu intimamente. E o que aconteceria se fosse possível arrancar da memória, como um pen-drive que retiramos do computador, o conjunto de experiências afetivas que tivemos com alguém?

Esse questionamento me vem por ocasião de mais um novo mergulho no lindo e denso filme "Brilho eterno de uma mente sem lembranças". Um filme que me aprisiona e apaixona. Nele, o casal Valentine (Kate Winslet) e Joel (Jim Carey), que vive um relacionamento tumultuado pelas extremas diferenças de temperamento, passa pelas mãos de um cientista que, com uma máquina que mais parece um secador de cabelos daqueles de salão de beleza de dondocas, faz sumirem as lembranças do que um viveu com um outro. Mais que isso: deleta qualquer memória de um em relação ao outro. Eles passam a não ter existido mutuamente.

O primeiro impacto para quem vê a situação de fora é a angústia de assistir à duas pessoas que compartilharam por determinado tempo a vida se toparem com indiferença - angústia que é ainda maior quando o primeiro encontro se dá em mercado e apenas um dos lados já teve a memória sugada. O outro, no caso Joel, vive a tenebrosa experiência da máxima indiferença da mulher que o desconhece - ok, isso acontece muito mesmo com a memória intacta em reencontros de ex-casais, mas têm o 'alívio' da dissimulação, de ser um fingimento no desprezo. No caso, não havia teatro, mas mecanismos neuronais que levaram ao desconhecimento de um pelo outro.

E qual a razão dessa angústia toda? Simples: a vida para nós é um inteiro, desde que nascemos até a morte. Mutilar uma parte dela e jogar na lata do lixo, como se fosse um pedaço de carne podre ou restos de entulho, não é natural. Daí o desamparo de familiares com entes que sofrem do mal de Alzheimer e não lembram de episódios representativos ou mesmo de pessoas. Em um filme francês que vi recentemente, Se souvenir de belles choses (Lembranças de boas coisas, em tradução livre), uma mulher chega a estapear, desesperada, o marido que sofre da doença e não se recorda dela. É uma espécie de morte em vida. E se somos um acumulado de experiências e elas é que moldam nossa personalidade e nossa visão de mundo, retirar um trecho é como manipular nossa identidade.

A cultura da felicidade, estampada a todo momento nas inserções publicitárias, ignora - por razões óbvias - que frustrações e dores são componentes da formação do indivíduo. Se pudéssemos simplesmente extraviar todos os momentos ruins de nossa memória, então não seriamos humanos, seriamos alguma outra coisa.
No filme, quando Valentine e Joel escutam as fitas em que relatavam ao cientista o porquê de querer ter a lembrança do outro eliminada o espanto e a expressão de desencontro deles é simbólica. As suas trajetórias lhe foram roubadas.  Eles ouvem as críticas que se fizeram e não entendem como puderam falar aquilo se não lembram de nada da relação. É incrível pensar como é importante para nós a lembrança. E não apenas por essa função formadora, mas também porque é a história do individuo, suas nostalgias, seu carimbo na face da terra.

Ninguém gosta de sentir as dores emocionais. Mas elas fazem parte do processo de humanização. Algum dos filósofos gregos, cujo nome não citarei por não estar certo de qual deles, questionou: Como posso conhecer a alegria se desconheço a tristeza? Uma mulher ou homem traido, por exemplo, poderiam livrar-se do desemparo da situação simplesmente ejetando-a da sua cabeça, caso o aparelho do filme existisse de fato. Mas ao passar por isso, lesariam sua trajetória e não teriam a experiência como trunfo para a sequência da vida. Assassinariam sua própria estrada. Seria uma espécie de suicidio parcial. Eu ouso dizer que o uma mente sem lembranças não teria brilho nenhum, pois seria uma mente morta.

Para dar título ao filme, o diretor francês Michel Gondry e o roteirista genial Charlie Kaufmann usaram um trecho de poema do inglês Alexander Pope. Um poema intitulado Eloisa to Abelard - uma história de um padre que se envolveu com uma protegida no século XII, na França, e acabou castrado. O pedaço que serviu de inspiração traz a mensagem:

"Feliz é a inocente vestal; Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida. Brilho eterno de uma mente sem lembranças; toda prece é ouvida, toda graça se alcança"