terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Tragédia na Torre Eiffel



Passou a semana inteira tentando acalmar a aflição. O medo de avião era tremendo, seu companheiro contumaz, a ponto de paralisar o trabalho e deixá-lo com a sensação de que caminhava linear para a sepultura nos dias que antecediam o embarque. À noite, em casa, usava ferramentas de pesquisa na internet em busca da impossível certeza de que um motor não pegaria fogo, um urubu distraido não invadiria uma turbina, o piloto não tiraria um cochilo na cabine ou um fanático religioso não sequestraria a aeronave e a jogaria de encontro a um alvo capitalista qualquer . Pensou em tomar soníferos ou um porre daqueles para ao menos anestesiar o pânico. Mas leu que poderia ter efeitos colaterais pesados nas alturas e abortou a ideia. Buscou entrevistas com pilotos experientes que nunca sofreram nenhum revés, testemunhos de quem foi perdendo com o tempo o pânico e estatísticas dessas várias que garantiam ser o avião o mais seguro dos meios de transporte perdendo apenas para o elevador. Mas até nesse dado encontrou motivos para inlfacionar sua paúra. Já havia ficado várias vezes preso com o ascensorista no prédio comercial em que trabalhava. Em uma das ocasiões a caixa de ferro e madeira deu trancos violentos. Se era mais seguro que os aviões, sua mente acovardada já disparava o sinal de advertência. Era um boicote mental a cada tentativa de aplacar a angústia.

A viagem era inadiável. Ou melhor, poderia, claro, cancelá-la, mas com um ônus emocional para ele irreparável. Pois se o fizesse perderia a namorada que tanto amava. Seria uma viagem à moda prova de amor. Após trocar beijos com uma amiga dela, em um episódio mal parado, a exigênciada amada para ter um perdão era travar um duelo com sua fobia em nome da salvação amorosa.

- Para provar que me ama, você irá fazer uma viagem de avião comigo. Só assim acredito no que você tem aí dentro. Não quero nem saber!

Palavras duras de fato. Coisas de mulher magoada. Ele logo lembrou da "malícia de toda mulher" sussurada por Noel Rosa no disco de vinil que seu pai preservava. Ela demonstrava ainda querer ficar com ele, mas precisaria de uma ação impactante, um gesto grandiloquente, nada de quixotices em moinhos de vento. Após dois anos de relacionamento, sabia que Flávio temia os aviões como ela as baratas e lagartixas. Como ele estava em desvantagem na situação e havia chorado copiosamente quando ela dera termo da relação, Luana recorreu à fobia do rapaz como forma de reabilitar as coisas. Foi inclemente, terminante. E não se sensibilizou quando ouviu dele, que fazia caras e bocas chorosas, em discussão na sala de sua casa:

- Você vai fazer isso comigo? Vai me colocar na fogueira dessa maneira. Você sabe a porra do medo que tenho desses troços voando. Não lembra como fico antes de viajar? Podemos fazer um cruzeiro romântico pelo litoral brasileiro, que tal? Com jantares à luz de velas, um velhinho tocando canções clássicas no acordeón especialmente para nós, vinho, comida far....

- Flávio, você é muito cara de pau - interrompeu ela - Não quero saber de viagem romântica coisa nenhuma. Quero que prove o amor. Passeiozinho assim é moleza fazer e não prova droga nenhuma. Para isso, tem que topar viajar de avião comigo. E não é viagenzinha vagabunda não, tipo ponte Rio-São Paulo ou coisas desse tipo, curtinho, indolor, que nem sente. Quero ir para a Europa, viajona, mais de dez horas no ar comigo. Eu, você e esse medinho teu aí. Se fizer isso, aí sim eu perdoo essas sacanagem que você fez comigo e a gente continua junto. Ou então ficará sem mim e com esse seu pânico tolo aí - desdenhou.

Flávio emudeceu, mas por dentro suas vísceras adquiriram feições enraivecidas, estavam como carne viva entubada. O dilema era enorme porque Luana era a razão de seu viver, tinha convicção disso Nutria ali uma aversão por si mesmo, pelo beijo furtivo que dera na amiga em um momento de embriaguez. Tudo se passara num bar da São João, quando Luana foi ao banheiro e Beatriz, a amiga, aproximou-se com os lábios e, na versão dele, tascou um beijo. E nem imaginava que ela ainda contaria para a namorada com versão deturpada e diria que ele é que lhe dera um "beijo forçado". Tudo se misturava na sua cabeça, que começava a pesar, a latejar e arrastar-se em fúria. Começava a não ter dúvidas de que precisaria encarar aquela viagem probatória. Viver sem Luana traria sofrimento demais.  Como era muito projetivo, já imaginava não suportar vê-la com outros homens desfilando pela vizinhança.

Antes de iniciar sua rotina de respostas arrefecedoras do medo, porém, ainda bolara um outro plano para dissuadir a amada. Uma tentativa final, um último apelo. Ignorando não ser ela muito feita a métodos romanescos à moda antiga, contratou dois seresteiros para se plantarem na porta de sua casa, no bairro italiano da Mooca, e cantar meia dúzia de cantigas de dor de cotovelo e romanescas . Ainda na vigília do sono, ao ouvir o fraseado de Roberto Carlos quase teve um colapso nervoso. "Nosso amor é assim, pra você e pra mim, como manda a receita! Nossas curvas se acham, as formas se encaixam, na medida perfeita". Conseguiu distinguir a voz rouca e desafinada de Flavio e, de camisola, como nas cenas tradicionais, abriu a janela e achou não sabia se era delírio ou verdade. Ao deparar com os dois senhores de fraque e viola ladeados por Flávio, com cara de cachorrinho submisso, ficou vermelha. Não encarnou Rapunzel nem Julieta, mas se assemelhou à "Moça da cidade" que seu pai também ouviu, "que quer dormir impunemente". Fez um meneio negativo com a cabeça, bateu as janelas com força e fez cessar a cantoria que acordou as redondezas.Flávio ficou lá, com cara de parvo, olhando para o vazio prenhe de aviões.
No dia seguinte, logo cedo recebeu uma ligação de Luana, que logo trombeteou:

- Flávio, se você recorrer a mais algum método ridículo de reconquista nem mais viagem de avião vai adiantar para reatar as coisas. Tô ficando de saco cheio! Ou você compra logo essas passagens ou nunca mais vai me ver nem pintada de marrom.

E, pá, desligou o telefone.

Era melhor mesmo não insistir. Com esses gestos "fáceis" de reconquista estava afundando cada vez mais. Sua fúria era tamanha que queria fazer um bonequinho de Beatriz e picá-la sofregamente. De nada adiantaria, claro, mas seria uma forma de destilar sua ira na amiga desagregadora. Teria que encarar aquele medo todo, enfrentar nuvens, turbulências, barulhos tétricos e passageiros falantes que insistem em desdenhar do pavor alheio. Comprou as passagens para o fim de semana, reservou hotel no centro de Paris, assim como passeios no museus do Louvre e de Orsay, uma noite no Moulin Rouge e outras maravilhas.

Sua mente pessimista, porém, achava que não chegariam ao destino. E se chegasse, o avião cairia no Senna ou sobre o Monmartre. Havia viajado de avião algumas vezes, todas elas a trabalho. O mais longe que tinha ido era a Buenos Aires, quando defrontou-se com uma turbulência tão extraordinária que comissários de bordo não conseguiram servir os lanches e tiveram que sentar-se, uma garrafa de coca-cola foi parar no assoalho e a uma senhora na poltrona à sua frente teve incontinência urinária. Naquele dia rezou pais nossos e ave marias aos quilos, como jamais havia feito, nem mesmo nas idas ao confessionário durante o Catecismo e nas sessões de novena que sua tia promovia em casa. O abandono à crença perdia para o desespero de causa. No limite existencial, passava de ateu a cristão dos mais devotos.

Na véspera da viagem, um sábado, nao conseguia ficar parado. Não podia ver Luana, que, na sua malignidade de mulher ferida, havia estipulado a condição inflexível de que se encontrariam apenas no aeroporto e, somente ao sentar no avião, iniciariam o rreflorescer da relação. Moça dura de fato. Flávio havia alugado uma série sobre desastres aéreos e sobre os aeroportos mais perigosos do mundo. A intenção era, num passe de mágica, a poucas horas de subir ao céus, convencer-se de que para estar num acidente aéreo teria que ser azarado além da conta.

Ou ainda, mostrando mais uma vez misticismo de ocasião, se acontecesse é porque assim teria que ser. Não havia ninguém próximo que perdera a vida em episódio assim. Sabia de um pai de uma amiga de um amigo, era o único, isolado caso que tomara conhecimento. O resto, distante, sabia somente pelo noticiário como todo mundo, nada mais. Repentinamente lhe veio à mente uma dúvida: "Por que as asas não rompem no ar? Parece tão fácil com aquela velocidade toda... Ou então, por que não há choques frequentes de aeronaves, já que os voos comerciais são milhares por aí? E ainda: por que pessoas andando para lá e para cá no corredor e comissários de bordo passando com aqueles carrinhos ultrapesados não faziam o avião despencar?" Sacudiu a cabeça, bateu no rosto e tentou parar com aquelas perguntas frenéticas e amadoras sobre o assunto. Estava surtando. Parecia um desvariado. Então, por impulso, ligou para Luana:

- Amor, por que as asas dos aviões não rompem no ar?

- Flávio, e eu sei lá. Tenho cara de engenheira de aviação, cacete?

- E por que aviões não batem no ar como carros nas estradas e..

- Flávio, estou fazendo um bolo com a minha mãe e não posso falar agora. Eu te encontro amanhã no aeroporto. Não esqueça de chegar antes para fazermos check-in e tudo mais. Te amo!

E pá, desligou..

Teve um súbito enternecimento

- Te amo? - pensou.

Aquele foi o único instante nos últimos dias em que sua alma adquiria frescor, sentia então uma inédita calma interna após horas a fio de ebulição.

- Então quer dizer que ela ainda me ama?

Com cara de felicidade desavisada esqueceu por alguns minutos que aquele amor se esfarelaria se ele não enfrentasse a bendita viagem do dia seguinte. Ouvir aquelas palavras depois de algum tempo era como um bálsamo. E então decidiu que até o momento da decolagem esqueceria os pensamentos pavorosos e se fixaria naquele "te amo". Como se fosse possível e ele não fosse escravo do medo. Resolveu rever as fotos que fizeram quiando completaram um ano de namoro. A comemoração veio junto com os 30 anos de ambos, nascidos no mesmo ano e separados apenas por cinco dias. Foi no Parque do Ibirapuera, onde passaram a tarde andando de bicicleta e amaram em paz. 

Quando a noite caiu, foi fazer as malas e o pensamento mórbido regressou.

- Estas malas e roupas virarão pó, assim como eu, carbonizado.

Sentia ódio de si mesmo por ideias tão acintosamente negativas. Estava sozinho em casa, embora morasse com os pais, que estavam no sítio da família, no interior paulista. A mãe o telefonou para dar 'boa viagem' e dizer aquelas coisas tipicamente maternas, tais como: 'Leva bastante roupa de frio que essa época é dura na Europa"... me liga assim que chegar lá... "Não esquece os documentos", e por aí vai... 

Foi comprar pão para o lanche e decidiu que dormiria cedo. Comprou uma cartela inteira de ansiolíticos e tomou numa tragada só, no limite da intoxicação. Queria ter uma noite de sossego e ter que enfrentar sua inquisição apenas na hora em que ela realmente se desenrolaria.

O dia chegou. O toque do despertador era o toque do suplício, um veneno para os ouvidos. Não tinha saída, ía para a sua guilhotina pessoal. Mas viver sem Luana era uma negação do viver. Outro devaneio obscuro logo o assaltou:

- Ao menos morrerei nos braços do meu amor!

No aeroporto, ao mostrar para a agente da companhia aérea seu passaporte, com as mãos trêmulas e suadas, via as pessoas duplicadas à frente. O coração trotava acelerado, sentia pulsação por pulsação, poderia contá-las. Luana, sorridente, não fazia um único carinho consolador e entrou no saguão intimorata, como a mais destemida das mulheres. Soava até como sadismo aquilo tudo. A imagem servia apenas para deixar Flávio ainda mais tenso e incomodado.

- Como ela pode? Como ela pode? - pensava.

Ao pisar na aeronave, gigante, com poltronas em três fileiras, sentia mais vertigem ainda. Não havia dúvidas, em sua cabeça derrotista, que estava caminhando para um cadafalso opcional. Escolheu ter o pescoço tolhido. Para resgatar uma relação, entregava a vida como se fosse um mártir amoroso.

Cintos atados, pernas tamborilando... Enquanto Luana lia a revista da companhia aérea como se estivesse num banco de praça e não perto de perfurar nuvens, Flávio engolia a seco e olhava pela janela. O avião taxeava pela pista e a asa sambava para cima e para baixo. Lembrou de tudo que leu, viu, ouviu e nada o consolava, o encorajava. De repente, o comandante soltou:

- Atenção, passageiro, decolagem autorizada.

Cerrou os olhos com força desproporcional e começou a tentar pensar em outras coisas. Rapidamente passaram por ele as tarefas acumuladas no trabalho, os filmes que queria ver, os livros que queria ler. Mas no meio de tudo isso sentiu uma mão lisa escorrendo sobre a dele o apertando. Era a mãe de Luana, que então o olhou nos olhos:

- Você é meu amor, sabia?

Flávio deu um sorriso amarelo, com tremeliques nas bordas do lábio.

O voo transcorreu sem sobressaltos, embora de tempos em tempos Flávio sentisse ânsia e tivesse que ir ao banheiro. Em uma dessas idas, uma aeromoça, notando o mal-estar, foi ajudá-lo.

- O senhor precisa de alguma coisa?

Ao ver aquela moça esguia, de cabelos curtos aloirados, boca macia e bem curvada, e olhos sutilmente castanhos, teve alguns segundos de leveza.

- Tô um pouco mal porque morro de medo de viajar de avião.

- Calma, calma, é tranquilo. É bem seguro aqui - disse ela enquando fez um discreta massagem em seus ombros e o conduziu até a porta do banheiro.

Ao sair, ainda dando de cara com a aeromoça, seguiu desconcertado e enfeitiçado. Ela fez tudo aquilo que em terra Luana não fizera. Dera-lhe um conforto de delicadeza feminina.

Horas depois, o avião chegou ao aeroporto de Orly, em Paris, e os dois começavam a viver uma pequena o que prometia ser a primeira lua de mel do casal. À noite, foram ver a Torre Eiffel iluminada e foi então que Flávio olhou para Luana, que esperava dele o beijo redentor, e disse:

- Luana, não quero reatar o namoro, estou apaixonado por outra.

Aquilo dito assim, na lata, depois de todo aquele enredo, esforço, deixou a moça paralisada, enquanto luzes piscavam na imensa da torre. Ela, parada, mal sabia que o coração de Flávio havia se encantado pela aeromoça.

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