quinta-feira, 29 de março de 2012

Shame - a escravidão provocada pelos instintos



Shame, filme dirigido pelo brilhante Steve McQueen (homônimo do famoso ator de "Papillon"), é basicamente sobre escravidão. O sujeito escravo de seus próprios desejos, aprisionado em uma libido desenfreada. Poderia não ser uma prisão, caso o protagonista vivido por Michael Fassbender vivesse o prazer sem culpas e tivesse controle dele em suas ações práticas, sem deixar que seus 'excessos' - terrível usar este termo - atrapalhem sua vida cotidiana.

O que acontece é que ele é um compulsivo sexual. Um executivo de modos elegantes esconde um 'depravado' que masturba-se incontinente, consome videos, revistas e objetos sexuais e experimenta aventuras lascivas diversas. No computador do trabalho, o HD está 'podre', conforme relata o próprio chefe, de tantos conteúdos sexuais que abriga. Seus olhos parecem sempre buscar a satisfação, seja no metrô, onde olha sôfrego para uma moça que lhe corresponde, ou na janela em que observa uma transa alucinada.

O filme, porém, passa a léguas de distância da polêmica barata. Ele fotografa a solidão do personagem que sofre por sua necessidade permanente de sexo. E a relação com a irmã, vivida pela normalmente doce Carrey Mulligan ("Educação" e "Driver") que vive desta vez uma intensa mulher. Ela é algum oposto do irmão. Não por ser assexuada ou pudica, nada disso. Mas porque entrega-se romanescamente ao amor. Ela, assim, desnuda a falta de afetos na vida do nosso protagonista. É uma espécie de concavo e convexo que provoca fissuras e expõe, a seu modo, as dores de cada um.

McQueen, que é artista plástico. faz uso magistral da imagem. Sempre de forma utilitária, com a finalidade de nos mostrar a angústia permanente - a música sóbria e pontiaguda colabora para essa sensação. Atordoado pela arrepio amoroso da irmã com seu chefe, o rapaz sai correndo pelas ruas de Nova York e a câmera o acompanha nessa abstração urgente. Quando ele discute com ela, no ápice dramático do filme, em que há o escarrar mútuo das fragilidades, a TV, turva, passa um desenho em preto-e-branco, como a provar a canção de Marina Lima: "As coisas não precisam de você".O sofrimento do viciado é dele e de quem o acompanha de perto, mas o mundo está alheio.

A questão central é esta: a razão pode ser biológica, mas os danos mentais são inequívocos. Um organismo dominado pelo testosterona produz efeitos devastadores, culpas, no seu dono. E ele, por mais que lute, não consegue desvencilhar-se dessa escravidão. A culpa por não conseguir ter relações amorosas ganha contornos efetivos quando na única situação em que ele tem algum contato afetuoso com alguém a sua libido se apaga e ele, vejam só, brocha! A tentativa de consolação da moça esvai-se em seu silêncio, que esconde o desejo de não ter desejos. Minutos depois ele já está em outra relação sexual, com a ardência recidiva.

PS? uma cena singela do filme me marcou profundamente. O personagem de Fassbender, em sua tentativa de viver socialmente e fugir do vicio, vai assistir a uma apresentação da irmã em um bar. Lá, ela canta a clássica "New York" com doçura e lentidão, levando-o às lágrimas. Pungente!

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