sábado, 24 de março de 2012

Chico Anysio: a morte de um, cem, mil...

Eu tinha 12 anos quando o trapalhão Zacarias morreu, em 1990. Lembro que me debulhei em lágrimas como se tivesse perdido um parente ou amigo. Eu era fã de todos os programas humorísticos da Globo e no meu coração que começava a "adolescer" aquela era uma perda irreparável. Eu não entendia como aquele sujeito que me proporcionava tantas risadas dominicais deixava de existir. Quem me dera tanta alegria me fazia então chorar. Eu nunca mais veria novos quadros do Zacarias...

O mesmo aconteceu ontem, ao saber da morte de Chico Anysio. A diferença agora, claro, é que as lágrimas foram escondidas, na sala de casa, pela vergonha adulta de se expor. Mas a dor está aqui, porque é novamente um pedaço da minha memória sentimental que se move. Chico, como bem destacou a belíssima capa do jornal carioca O Dia, utilizando fala de Drummond, não era um, era tantos. Com ele morreram Justo Veríssimo, Bento Carneiro, Alberto Roberto, Tintones, Bozó, Coalhada, o professor Raimundo e uma infinidades de outros tantos tipos criados por essa mente prodigiosa e incansável. A dor, portanto, multiplicou-se, pois um batalhão de figuras clássicas da nossa TV (e, antes, do rádio) nos deixou.

Sempre me impressionou demais a capacidade comunicativa de Chico. Antes de começarem as esquetes da inesquecível Chico City e sua gente, ele desfilava seu talento de cronista. Contava histórias de forma deliciosa. Era o jeito de falar popular, as expressões... Alguém disse por aí que era um professor, e por isso Raimundo, da Escolinha, seu personagem mais fiel. E era isso que ele passava mesmo nesses bate-papos com a plateia (o programa era gravado em um teatro) e o telespectador: dava aulas de cotidiano. Histórias saborosas contadas com elegância e simplicidade.

A última entrevista de Chico, dada à Patricia Poeta, no Fantástico, impressiona pela lucidez. Depois de ter ficado um tempão em coma, já com 80 anos, sua memória permanecia intacta, profunda, e o jeito de tagarelar ainda era o mesmo. Ao dizer que "o sucesso é um acidente, por isso é preciso ter humildade", mostrou o que se leu sempre a seu respeito: uma maturidade que só mentes sábias atingem.

Chico conseguiu, com sua criatividade e versatilidade, imprimir um humor leve e ao mesmo tempo crítico. Tim Tones, muito antes da massificação da fé manipulada, arrancava dinheiro dos fieis com promessas de eternidade. A compra de indulgências na Idade Média era transferida para a encenação, com a música de fundo dando o tom crítico: "Tim Tones, glória, Tim Tones". Justo Veríssimo, o político com alergia a pobre e inescrupuloso, era um retrato de muitos dos nossos congressistas e chefes de governo. Serve até hoje, é atual. Havia também tipos nordestinos, como Painho, ou futebolísticos, como o repórter Bozó e o "craque" Coalhada.

A generosidade de Chico fica cristalizada no seu gesto de, ao refundar a Escolinha do Professor Raimundo, fazê-lo para resgatar talentosos humoristas da velha guarda que estavam proscritos, tais como os gigantes Brandão Filho, Grande Otelo, Lucio Mauro, Rogério Cardoso, entre tantos outros. Essa faceta do homem de mil facetas mostra a paixão que tinha pelo ofício e a devoção a quem compartilhava desse ofício. Era comum em entrevistas ele reverenciar diversos companheiros de trajetória, dar-lhes tintas fortíssimas.

A criação de Chico é parte tão forte do DNA da minha geração que imperceptivelmente seus personagens se manifestam no meu cotidiano. Na redação do LANCE! eu e vários companheiros repetimos os bordões do âncora do jornal que apresentava as notícias com um "erre" forte: você rrrrirrrá, você se apaixonarrrrrá, você chorrrrarrrrá. Ou então, o "erre" saltado da ignorância desconhecida de Alberto Roberto: você já garavou algum porogarama? E até Nazareno, com seu vitupério à mulher (Caaaaaalada), entrava nos chistes.

O humor de Chico deu carimbo para a arte da risada no Brasil. Infelizmente essa gente também morre, desencarna e nos deixa órfãos. Como ele mesmo afirmou na última entrevista, os humoristas são insubstituíveis. Nunca mais haverá um Ronald Golias, um Mussum, um Francisco Milani, um Zacarias... Para nós fica a memória, a lembrança afetiva. Não tem valor a alegria que Chico Anysio nos deu por anos a fio. Se a alegria é a prova dos nove, como disse certa vez o modernista Oswald de Andrade, Chico ratificou isso.



Descanse em paz, velho Chico!

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