"Como se essa grande cólera tivesse lavado de mim o mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de signos e estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Ao percebê-la tão parecida a mim mesmo, tão fraternal, enfim, eu senti que havia sido feliz e que eu era feliz mais uma vez. Para que tudo fosse consumado, para que eu me sentisse menos só, restava-me apenas desejar que houvesse muitos espectadores no dia de minha execução e que eles me recebessem com gritos de ódio." (O estrangeiro, Albert Camus) |
Ryan Gsolin, que interpreta o rapaz não nomeado (esse mistério me lembrou muito Cães de aluguel, onde os membros da gangue são conhecidos por cores), pinta e borda na meticulosidade. Ele, que de dia faz dublê de cenas malabarísticas de cinema com carros, e à noite, com sua destreza ao volante, ajuda bandidos a cometerem seus crimes (e avisa, você tem cinco minutos para voltar ao carro!). O olhar compenetrado, o ar sisudo, o palito no dente e o escorpião na jaqueta denunciam um antissocial. Mas o coração se deixa amolecer por uma meiga vizinha casada com um presidiário.
O ponto chave do filme é exatamente o mesmo do seu guru "Taxi driver" (o diretor não falou nada de inspiração, mas ela é muito óbvia). Esse rapaz sem muita alegria se vê tomado por uma paixão que inspira cuidados. No caso de Bickle era uma protistuta, interpretada por Jodie Foster e suas calças acima do umbigo. Já o anônimo afeiçoa-se pela personagem de Carey Mulligan e seu rostinho de freira (no filme "Educação" ela era mais rebelde!). E leva de roldão o filho dela, Benício.
Ou seja, temos o homem supostamente insensível tomado por vontade de cuidar. Ele não vive com a moça uma tórrida paixão, mas sim uma intenção protetora. Se Biclke queria retirar a adolescente do meretrício, o personagem de Gosling quer evitar que mãe e filho sejam alvo da criminalidade que abarcou o marido da jovem. É uma complexidade humanizadora que inspira no espectador afeto pelo protagonista, embora ele seja um contraventor. Quando você acha que ele soltará frases do tipo "você não sabe com quem está falando" ele faz um cândido aceno positivo com a cabeça. Mas essa sua devoção por uma causa pode fazê-lo também surrar uma mulher e chutar infitamente a cabeça de um inimigo no elevador.
De Niro, como Travis Bickle - "a psicopatia urbana"
Esse traço psicológico ambivalente do personagem já vale o filme! Una-se a isso a violência estilizada, com cenas originalíssimas no exagero, e tem-se um cardápio de gênero. Você que ainda não viu note uma das tomadas finais, de um assassinato na praia, que parte da areia rumo ao mar. Fiquei pensando na hora: um lugar onde de dia tantos banhistas tomam sol e crianças jogam bola servindo a um crime. O desespero no espaço da descontração. É dessas contradições que se faz a mente criativa de um diretor. É como o pugilista interpretado por Bruce Willis em Pulp Fiction escolhendo a arma para matar ou aquela cena no boliche, em Ouro Negro, em que o padre é arremessado nos pinos. A violência caricata de tão exacerbada. A sacada é o que vale. Afinal, estamos falando de cinema, com questões reais e questões menos reais.
Abaixo, um trailler de Drive
PS: Ryan Gosling está ótimo no filme, mas seria herético dizer que ele se equipara a De Niro em Taxi Driver. A atuação de De Niro vai ficando cada vez mais espantosa com o transcorrer do filme, quando sua mente vai adoecendo mais e mais. O seu visual punk na parte final é de antologia incomparável a meu ver.
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