domingo, 18 de março de 2012

A força dos gestos em um filme sobre imigração



"Tanta gente canta, tanta gente cala. Tantas almas esticadas no curtume" (extraído da canção O ciúme, de Caetano Veloso) 

A força dos gestos! Foi sobre isso que pensei durante e, principalmente, depois de ver O porto (Le Havre, no original francês), que está em exibição. O escritor que abandona o ofício e se refugia numa cidade portuária, a já mencionada Le Havre, na Normandia, norte da França, para viver uma vida simples, desapegada, como engraxate. Isso por si só já é espantoso, de um ousado despojamento: de escriba e engraxate, mamma mia! De repente, Marcel Marx, vivido por André Wilms, vê-se diante da situação em que o fará ceder à tal força do gesto. O humanismo que reside, acredito eu, em muitas pessoas. Ele acolhe um garoto africano, migrante ilegal em um país cujo tema do trato com os estrangeiros está sempre na ordem do dia. A bem da verdade, a questão da imigração e seus desdobramentos políticos e econômicos estão em pauta há muitos anos nessa globalização parcial. 


Ao ver o pequeno "apátrida" se escondendo nas pedras do porto (lembrei de Gesùbambino cantado pelo Chico: "Esperando, parada, pregada na pedra do porto com seu único e velho vestido cada dia mais curto), o nosso "herói" estende-lhe a mão. Uma parábola cristã essa. O primeiro ato é dar a ele sua marmita, com um ovo cozido, um pedaço de baguete e alguma bebida. O passo seguinte é abrigá-lo em sua casa. E faz tudo escondido da polícia de imigração e seus olhos de lince, embora possa haver nela, como o filme mostrará, também sinais de afeto delicadamente humano. 


A saga de Marx (li por aí que é uma homenagem tanto para Karl Marx quando Groucho, e há no personagem gestos do pai do comunismo e do comediante americano, de fato) para abrigar o infante nascido no Gabão é acompanhada da sua dor pela ausência da mulher, internada em um hospital para tratar terrível doença, o câncer, a antiga insidiosa moléstia. O filme, de um colorido antigo, lembra o tom dos filmes da Nouvelle Vague. Parece Truffaut! Os atos mais comezinhos são mastigáveis pra quem gosta, como eu, de pequenas coisas. A forma como o sujeito come o pão, varre a cozinha e conversa, terno, com o seu pequeno amigo. Há também um cão no filme, como metáfora clássica do companheirismo. 


Uma questão pulsante do filme para mim é: há leis que podem sim render-se a gestos. É bobagem achar que isso cria uma socidade de anomias, sem normas. Quando o coração fala mais alto, o indíviduo pode se sobrepor à carga do expurgo. A legislação determina a expulsão do imigrante ilegal. A expulsão do garoto é uma violência moral, porque o joga na sarjeta e ignora preceitos humanísticos. Entra na onda de extrema-direitas, com seus Le Pens da vida, que agem na mão da demagogia barata. Ao esconder o menino e ir atrás do seu avô, o literário engraxate dá um nó no legalismo em nome do gesto fraterno. Olha eu aqui mais uma vez falando em cristandade... 

Encontrei paralelo com o argentino "Um conto chinês", que resiste intimorato em cartaz em São Paulo. Nele também há o homem maduro a ajudar um jovem, no caso um chinês, a driblar as durezas da vida de migrante e religá-lo aos laços familiares. E também há gestos minimalistas deliciosos, como o jeito que guarda e conta os parafusos que vende em sua loja e chia com os fornecedores "trapaceiros". E o destampar de uma humanidade não aparente. O personagem vivido pelo fabuloso Ricardo Darin aparenta ser um escudo, mas os gestos têm uma força humana incrível. Ele é bruto ao criar uma contagem e deixá-la fixada na geladeira para o seu hóspede saber que tem prazo para resolver-se. Mas ao mesmo tempo, quando a situação fica extrema, ele se enterniza. Pessoas assim conhecemos e conheceremos muitas. Elas têm essa beleza de revelar-se doces quando as temos como pétreas. São capazes de pequenos gestos engrandecedores. 


PS: Caetano Veloso tem uma canção chamada "O ciúme", que remete ao rio São Francisco - uma declaração de amor entre tantas ao rio. Há nela uma frase que me faz pensar no que são os imigrantes mundo afora, sejam eles os haitianos trazidos pelos tais coiotes ao Brasil, os mexicanos nos Estados Unidos, turcos na Alemanha ou os africanos, que migram, voluntaria ou involuntariamente, desde a época do doloroso tráfico negreiro.Por isso ela serviu de epígrafe para este post: "Tanta gente canta, tanta gente cala. Tantas almas esticadas no curtume".



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