sexta-feira, 9 de março de 2012

Paratodos, um albúm de Chico para ornar vidas



Sou fã até as tripas da obra de Chico Buarque de Hollanda. Até porque ele fez "das tripas a primeira lira que animou todos os sons". Isso é sobejamente conhecido de todos que me cercam. Na próxima quinta-feira estarei no HSBC para ver pela terceira vez um show do que considero o maior compositor e letrista que já tivemos e teremos (dúvida que alguém possa produzir em quantidade e qualidade o que esse rapaz já fez - e ainda fará - desde 1965, quando lançou o compacto com "Sonho de um Carnaval" e "Pedro Pedreiro". Então, resolvi revisitar o seu álbum "Paratodos", uma joia lançada em 1993. E o espanto entusiástico renovou-se. Que monumento!

O disco (sei que o termo é antigo, mas acho preciso) tem tom autobiografico. O música-título remete à canção em que homenageia todos que pavimentaram e pavimentarão ("Evoé, jovens à vista") o nosso cancioneiro, desde Noel, uma espécie de prévia buarqueana, até os contemporâneos Caetano e Gil. E nela uma exaltação a Tom Jobim, o maestro soberano do artista de olhos verdes. No especial Chico e as Cidades o poeta (sim, senhores, poeta!) diz que Tom e Niemeyer foram seus faróis. Eis o que ele disse:

“Depois larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando minha música sai boa, penso que parece música de Tom Jobim. Música de Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar”

E falando em Tom, ele está presente no álbum. Na faixa "Piano na Mangueira", em que a tabelinha dos dois repetiu outras, como em "Anos Dourados" e "Sabiá" (vencedora da fase brasileira do II Festival Internacional da Canção). Nela, a devoção à escola verde-e-rosa e às cabrochas se faz presente, com os teclados de Jobim dando todos os nortes.

A exaltação a quem produz arte não se resume em Paratodos aos músicos, ela vai além. Em "Tempo e artista", nosso Chico compõe uma letra magistral sobre as agruras que a passagem do tempo impõe a quem faz da sua criação algo atemporal (as obras são eternas). A narrativa vai expondo as armadilhas desse algoz:

"Já vestindo a pele do artista o tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco apenas abre a voz e o tempo canta
 Dança o tempo sem cessar, montando o dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama que ainda está por ser escrito"

Há também a calejada dobradinha com Edu Lobo na lacrimosa "Choro bandido", numa poética infinita. O trovador que admite sua inferioridade diante da beleza amada mas que a deixa enredada. O verso deixa claro, sem titubeios: "Mesmo que você feche os ouvidos e as janelas do vestido, minha musa, vai cair em tentação. Mesmo porque estou falando grego com sua imaginação". Essa canção casa com "Sobre todas as coisas", que já foi gravada por Gil, Betânia e Maria Rita. A divinização da mulher se faz presente, sendo de seu ventre "que jorra o leite e o mel, mas esses vales são de Deus". A música do inicial ao fim é um implorar pela correspondência amorosa.

"De volta ao samba" repete o clamor, porém em tom inesperado. "Pensou que eu não vinha mais, pensou?". Porém, é o batuque o alvo, a música, que é centro da vida do compositor, quem não esperava mais por ele. É mais ou menos como a faixa que abriu os shows do CD passado de Chico: "Voltei a cantar porque senti saudades do tempo em que eu andava na cidade". Não á toa o mestre sempre ressalta que no processo de composição há fadiga e tempos depois as saudades de dedilhar novos acordes e criar novas músicas.

A faixa "Outra noite" volta à temática do divino presente em "Sobre todas as coisas" e do tempo, já protagonista de "Tempo e artista". Desta vez é a repetição, os deja vùs, da existência: "Será que já não vi de modo impessoal e em tempo diferente um dia estranhamente igual? Dias iguais, avareza de Deus, passando indiferentes por estranhos olhos meus"



De todas as canções que urdem o álbum, porém, a mais conhecida certamente é "Futuros amantes". A música é outra a tocar na ideia temporal, com amores do passado influenciando os futuros, pois, no fundo, os romances são iguais em seu fundamento de germinação. "Não se afobe não que nada é pra já, amores serão sempre amáveis".

Em "Biscate" Chico sai um pouco da tríade precípua da obra e vai ao cotidiano de um casal, com tiradas humorísticas. É uma troca de farpas anedótica entre os amantes que reclamam da gastança de um e da apatia do outro. Gal Costa interpreta a voz feminina. Há delícias como quando o homem diz "Quem que te mandou tomar conhaque com o tíquete que eu te dei pro leite? Quieta que eu quero ouvir Flamengo e River Plate". E ela responde: "Telefone é voz de dama, se penteia pra atender!". Esse tipo de dueto amoroso, aliás, não foi novidade no cancioneiro buarqueano, basta lembrar de "Sem fantasia", que foi central no famoso show que Chico fez com Maria Bethânia no Canecão nos anos de chumbo.

O álbum não podia passar sem o toque social, o enfoque no marginalizado, uma característica notória da carreira do artista carioca. Em "Pivete", ele fala dos meninos que caem na marginalidade, roubam carros, fogem, e são, no fundo, Pelés e Manés - referência explícita aos jogadores de futebol. É um largo de esperança na desesperança.

Por fim, o recorte autobiográfico está fortemente presente em "A foto da capa". Nela, Chico refere-se a um episódio da sua adolescência, quando foi preso ao "puxar um carro", algo que fazia com colegas por diversão. Foi fichado como ladrão, com aqueles retratos de delegacia de frente e perfil. Essas imagens reais estampam o miolo da capa do álbum. Os trocadilhos que faz na letra são arrebatadores:

"É uma foto que não era para capa
Era a mera contracara, a face obscura
O retrato da paúra quando o cara
Se prepara para dar a cara a tapa"

Na composição Chico deixa claro, para saudação do tempo: "E o poeta que ele sempre se soubera claramente não mirava algum futuro". Somente um gênio criativo poderia esboçar tal ideia: o menino que um dia seria um craque das palavras naquele momento era fichado olhando para um horizonte, que seria pródigo, e não via nada.

Paratodos deveria ser um ornamento da vida de artistas, que vivem no tempo a devoção às suas musas.

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