domingo, 4 de março de 2012

Vingança comida crua e sem moderação

A vingança pode ser um prato que se come frio ou ser um m..., como pregam os adesivos de caminhão, mas tem lá suas delícias. O seu sentimento primário é saboreado desde tempos antigos. Está na raiz do que é ser humano. Na mitologia grega ela está presente na figura de Nêmesis, que força Narciso a enfeitiçar-se pela própria beleza na superfície de um lago e assim, abobalhado, paralisar-se até o definhamento, realizando-se dessa forma a vingança das moças por ele desprezadas. A Guerra de Tróia é um festival clássico de atos vingativos. Sua raiz está na ira da deusa Eris, ou Discórdia, após ser preterida no casamento dos deuses Peleu e Tétis. Por vingança, ela monta uma armadilha e cria rusgas entre outras deusas, levando ao conflito. Melenau, rei de Esparta, iniciou a guerra para vingar o rapto da esposa Helena pelo troiano Páris. Aquiles assassina Heitor para vingar a morte de seu amante Pátroclo. E por aí vai em lista infindável.

O princípe Hamlet até questionou-se sobre as vãs filosofias entre o céu e a terra e o estado do ser, em instantes de ponderação, mas seu senhor foi o desejo vingativo e por ele empunhou a espada para matar o tio Claudio em nome do pai. No seu romance Abril Despedaçado, o albanês Ismail Kadaré conta a história de um enorme circuito de vinganças. Montanheses no norte da Albania seguem o Kanun, conjunto de leis não escritas que determinam que o sangue derramado de um integrante de um clã deve ser vingado com a morte de membro de clã homicida. É a chamada vendetta, muito comum nas tripas da máfia italiana. As vinganças se sucedem e vão cumprindo uma função de limpeza que o termo insuspeita.

Assim, na mitologia ou na realidade, a vingança é protagonista desde sempre. Nos capitulos folhetinescos, os autores capricham na construção dos personagens vingativos. A mulher traida pelo marido arma uma dolorosa vingança a quem tanto mal lhe fez. À base da lei de Talião, no olho por olho e dente por dente, vinga-se na mesma moeda. Às vezes, com o melhor amigo do traidor, eregindo uma vingança cruel para que a dor de um passe para o outro. É a vingança rodrigueana, com requintes maquiavélicos. Nela aciona-se o botão do "quem ri por último ri melhor".


                                          A Deusa Éris, furiosa por não ter sido convidada para casamento de deuses, lançou a pomo da discórdia para vingar-se (a maçã era "dirigida à mais bela das Deusas"). O ato provocou, segundo a mitologia, a Guerra de Tróia.

O pensamento cristão, assecla de doutrina de oferecer a outra face, condena a vingança. Mas a alma humana na maioria das vezes ignora a voz do púlpito e acaba cedendo ao instinto, que queima a carne, de ver crepitar no fogo o autor de um dano. A vingança é o triunfo do sangue fervente, do orgulho ferido. Assim está gravado na história humana.

É justamente a vingança o motor de um dos melhores filmes produzidos nos últimos anos. Em Bastardos Inglórios, o inquieto Quentin Tarantino ficcioniza o desejo dos homens de boa vontade do século XX: vingar os que sofreram com o holocausto na Segunda Guerras Mundial. Um grupo de judeus, os tais bastardos, vai à caça de nazistas para escalpelá-los. Difícil não admitir a sensação de catarse ao ver as cenas, algumas cômicas, de hitleristas tendo o couro cabeludo rasgado. Censuramos a religião que vive dentro de nós, a pintar a vingança como pecado, para sentirmos espontâneo prazer nos atos sanguinolentos. Não deixa de ser uma arte da vingança as figuras caricatas de Hitler em vários filmes, como o Grande Ditador, A queda e o próprio Bastardos Inglórios. Gritão, mimado, gesticulador excessivo, o genocida é ridicularizado. Chaplin e Bruno Ganz nos redimiram! Esta, aliás, é uma vingança mais elegante, pois faz uso da expressividade artistica para redimir um pouco a maculada história de uma época.

Tarantino, diga-se, tem na vingança a pedra fundamental de sua obra. Kill Bill, feito em duas partes, é o símbolo disso. A noiva Beatrix Kiddo sofre um atentado coordenado por seu marido e vai atrás de cada um dos integrantes da seita para vingar-se topicamente.

A vingança pode ser um prato comido cru. Mas, cinema e literatura provam, as bocas famintas não distinguem as carnes.
rascunho

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