quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Amantes fellinianos - Um beijo roubado

Os dois de repente só se olhavam. Havia uma cruzada mútua e fratricida, com uma íris cristã querendo invadir a outra. Nada, no fundo não era cristandade, afora a doçura, pois a pronúncia era da libido. Havia, no fundo, chama nas pupilas, na mútua contemplação que se insinuava eterna. Eram os olhos que se ardiam, com os cílios quase incendiados. Nas piscadas nem reparavam, eram intervalos ínfimos, sem importâncoia. Olhos que ensaiavam, que preparavam para que as noites fossem daquela mulher, muito buarqueana, "como oração na catedral", sem que cuidassem "do mundo um minuto sequer".


A batalha, romanticamente oftalmológica, começara em instantes. Estavam tomando vinho tinto suave e falando sobre cinema, na doce vida de Fellini. E eis que a antológica cena de Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg se repetia em intimidade só deles. Ali viviam seu próprio mergulho na Fontana di Trevi. Ah, La dolce vita nas retinas, retintas de suor. Olhos também suam quando tragados pela paixão.
Foram minutos de sedução nos olhares. Parecem segundos, já que o tremor da alma engole o tempo. Os goles de vinho espumavam nas entranhas ansiosas de calor.

Era "sexo, mentiras e videotape" sem videotape. A gravação era feita a olho nu, cara a cara, um em cada canto do sofá. As taças corriam riscos em mãos encharcadas de vontades. Alguém daria o bote se as esclerótidas não diminuissem a pressão. E voltavam na cabeça dele os versos de Chico: "Amo tanto e de tanto amar, acho que ela é bonita". Um amor descoberto ali, na calada da noite, quando tudo parecia só cinema. Seria ela Giuleta Masina? Seria ele o seu Fellini reproduzido?

Não houve tempo para música, embora ele tivesse preparado ao lado do velho aparelho de DVD uma trilha sonora de filmes de Woody Allen. Tocaria o sax de "Meia noite em Paris" para seduzi-la. Não precisou, os olhos se anteciparam. Bastaram as palavras da vida doce, que logo vinham se transformando em murmúrio, para o mundo racional ruir. Os corações estavam acelerados, talvez ao dispor dos ouvidos da vizinhança.
Foram minutos e minutos assim, de um silêncio em que olhos se devoravam. Nenhuma imagem era mais acariciante que as tramas oculares alheias. Ela via duas luas meladas, quase se desmanchando. Ele não cria no que assistia: o espetáculo de gêmeas dançarinas de anil com movimentos sutis. em um lago dos cisnes cativo, só dele.

As bocas começavam a acumular sede. Sede da saliva próxima. Foi quando os olhares largaram a fixação e iniciaram o revezar meticuloso entre olhos e lábios. Estava desenhada a trama. Após o ponteiro do relógio fatigar-se, fora dado o pontapé inicial. As bocas se uniram, as mãos agiram e a paixão eclodiu. Tudo muito assim, Felliniano, buarqueano, com  doces vidas e catedrais explosivas. Era mais uma manifestação súbita da paixão. Eram, enfim, um beijo roubado!

Nenhum comentário:

Postar um comentário