terça-feira, 17 de maio de 2016

As vozes de Tchernóbil ainda ecoam




Ainda estou com as vozes de Tchernóbil ecoando na cabeça, mesmo passados tantos dias do fim da leitura do livro. Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel do ano passado, escreveu um sensível documentário em forma de monólogos. Todos muito dolorosos, prenhes de perdas, de caça pela identidade perdida ou busca de alento diante da terra arrasada, da vida arrasada pelo vazamento devastador. Literatura jornalística, já consagrada por gente como Capote, Talese e Norman Mailler por sua inegável capacidade de narrar o drama da condição humana real recorrendo à técnica habitual da ficção. Tudo em primeiras pessoas - aqui o plural é proposital. Todas elas atingidas pelo maior desastre nuclear da história, ocorrido no dia 26 de abril de 1986. Lá se vão 30 anos...


Há a voz de crianças, mulheres, homens e até de animais. Estes, claro, expressando-se nos meandros da narrativa, alegorizados, antecipadores por seu extinto premonitório e, ainda assim, vitimizados pelo maior desastre nuclear da história.
Como diz o subtítulo, é a história oral da hecatombe. Relatos da repentina transformação de vidas, muitas delas bucólicas, em morte, ainda que vidas.. sobrevivendo para uivar sua dor. São professores e professoras, enfermeiras, bombeiros, soldados, ex-militantes comunistas. E as mulheres dos liquidadores, homens encarregados de “suavizar” o impacto do espalhamento radiativo e que participaram da construção do sarcófago que embalou a área onde ocorreu o vazamento. Narrativas humanas recheadas de porquês, porquês e mais porquês. Engolfadas pela tragédia e pela impotência.
A violência sofrida por corpos e legada a seus descendentes em mutilações de braços, pernas e deformidades que deturpam a genética. Como a rosa com cirrose descrita por Vinicius de Moraes para lamuriar por Hiroxima. Carnes atingidas irremediavelmente pela radiação. Separei um trecho que me tocou muito - há outros tantos que tocarão muito a quem mergulhar no livro. Lágrimas não serão incomuns:
"Eu queria ter um filho que fosse fruto do amor. Esperávamos o nosso primeiro filho. O meu marido queria um menino, e eu, uma menina. Os médicos tentavam me persuadir: "Você deve abortar. O seu marido esteve muito tempo em Tchernóbil". Ele é motorista e o chamaram já nos primeiros dias. Transportava areia e cimento. Mas eu não acreditava, não queria acreditar. Eu lia nos livros que o amor pode vencer tudo. Até a morte.
A criança nasceu morta. E sem dois dedos. Era uma menina. E eu chorava: "Se ao menos tivesse todos os dedos. Não vê, é uma menina..."

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