quarta-feira, 20 de maio de 2015

Pais e filhos, obra sobre choque de gerações e o niilismo na Rússia oitocentista

                                          Capa de Pais e filhos em edição da Cosac Naify

Estava há tempos para ler "Pais e filhos", principal romance do russo Ivan Turgueniev (1818 - 1883), e finalmente o fiz. Comprei a bela edição da Cosac Naify, como parte da coleção A nova prosa do mundo, com uma capa dura dessas que dão a um livro o aspecto de uma perene juventude. Antes só havia lido desse autor Rúdin (Editora 34), novela que trata basicamente do homem supérfluo, entidade bastante presente na literatura russa de dois séculos atrás.

A obra é fundamentalmente centrada na figura do jovem Bazárov. Foi graças a esse personagem que o termo niilista se difundiu e gerou bastante polêmica em um período de ruptura na antiga Rússia czarista. Bazárov sintetiza o que o livro pretende mostrar , ideia apresentada de chofre no título: o choque de gerações em um país que passa por drásticas transformações. Ele foi publicado no começo da década de 60 do século XIX, quando o regime de servidão foi abolido pelo tsar Alexandre II (1961). Como explica o tradutor Rubens Figueiredo nos anexos do livro, o regime de escravos mujiques - ou almas, como costuma aparecer nos romances da época -, teve na sociedade russa influência da mesma monta que o tráfico de escravos negros teve na formação do Brasil, com reflexos até os dias atuais.

Aqui uma rápida digressão para dizer que o conjunto de anexos, com folhas acinzentadas, onde encontra-se o texto de Figueiredo, é uma das delícias da edição. Esse compêndio conta também com um ensaio do próprio Turgueniev sobre Hamlet e Dom Quixote e reflexões do celebrado escritor Henry James sobre a persona e a obra do russo.

Bazárov é um sujeito que não respeita nenhuma autoridade e religião, despreza o amor e só vê cabimento no que é científico. Em uma sociedade em transformação, muito tradicionalista, gera admiração em alguns, como seus pais, e repugnância, ou certa resistência, em outros que o cercam. O livro começa com sua apresentação para a família de um colega da Universidade de Petersburgo, Arkadi Kirsanov, que visitava seu pai e tio em uma pequena província, de nome Marino, após regressar de tempos de estudo. A partir dessa chegada sucedem-se episódios de choque entre as negações de Bazaróv e as mesuras e desmesuras de uma sociedade que se via desamparada, deslocada no tempo. O tio de Arkadi, Paviel, torna-se seu principal adversário, não tolerando seu tom e seu desprezo pela cultura vigente, sua filosofia, a ponto de desafiá-lo para um duelo, desses típicos das novelas antigas, e que terá desfecho tragicômico.

O niilismo cultivado por Bazárov é colocado em xeque em dado ponto da história porque ele se apaixona. Sua figura desmorona-se diante da madame Odintsova, ou Ana Sergueivna, uma integrante da nobreza com pensamentos próprios, espírito que cativa o personagem.

Lembrei bastante de Settembrini, o racionalista de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ao defrontar com as ideias de Bazárov. A diferença, porém, é que o racionalismo dos dois tem nuances diferentes. Settembrini era um humanista na acepção do termo, ao passo que não é essa a preocupação central de Bazárov, mas sim a contestação. Ao me informar do contexto em que o livro foi escrito, a história ganha outra dimensão, mas a novela não depende disso para prender o leitor. A "insolência" de Bazárov diante dos costumes e os paradoxos humanos fazem, como acontece nos clássicos de outros gigantes russos, em especial Dostoievski, a trama ter qualidade atemporal. Religião e amor seguem sendo temas constantes na sociedade, tanto ocidental quanto oriental, e há quem os enfrente, com perdas e ganhos.

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